Cavalos de Tróia

Sobre o projeto da Praça da Soberania, de Oscar Niemeyer.

Gustavo Lins Ribeiro

O envolvimento de Oscar Niemeyer por meio século com o projeto de Brasília, cidade em que viveu apenas durante a construção, certamente o qualifica para intervir no seu espaço. Mas, por mais ilustres que sejam, nenhuma cidade precisa de proprietários do seu destino. A configuração espacial do Plano Piloto já é regida por várias leis. Assim, não cabem excepcionalismos, mesmo em se tratando do distinguido arquiteto.

Na verdade, Brasília proporcionou a Niemeyer uma oportunidade que nenhum outro arquiteto ou artista, nem mesmo Michelangelo, teve. É só pensar em vários dos muitos marcantes e imponentes edifícios que levam a sua assinatura tanto na Esplanada dos Ministérios (o Museu da República, o Teatro Nacional, a Catedral, o Palácio do Itamaraty), quanto na Praça dos Três Poderes (o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e a sede do SupremoTribunal Federal), ou em outras áreas (o Quartel General do Exército, a sede do Superior Tribunal de Justiça, o Palácio da Alvorada, a Procuradoria Geral da República, o Centro de Treinamento do Banco do Brasil).

É tamanha a identidade que se faz entre Niemeyer e Brasília que, com frequência, se diz que ele criou a cidade, em um verdadeiro esquecimento da autoria do Plano Piloto, de Lucio Costa, tombado em 1987. De fato, é mais fácil perceber imediatamente a beleza da arquitetura de Niemeyer do que entender a lógica, igualmente modernista mas bem mais abstrata, do planejamento urbano da cidade. Também é mais fácil preservar edifícios do que um plano que, a rigor, vem sendo adulterado paulatinamente de diversas maneiras.

A última proposta de intervenção urbanística e arquitetônica de Niemeyer para a Esplanada dos Ministérios foi divulgada pelo Correio Braziliense, em sua edição de 10 de janeiro de 2009. Infelizmente, a chamada Praça da Soberania, situada no canteiro central do Eixo Monumental, a poucos metros da rodoviária, representa, se implementada, uma violação do tombamento do Plano Piloto.

É sabido que a Esplanada se inspira nos Champs-Elysées, de Paris, e no mall, de Washington. Foi pensada por Lucio Costa como uma grande perspectiva que, começando na rodoviária, é coroada, simbolicamente, como em Washington, com o edifício do Congresso Nacional que deve, sobranceiro, reinar, único, sobre todos os demais. Tanto que é proibido construir em todo o Plano Piloto qualquer edificação mais alta que o Congresso, símbolo maior do poder do povo em uma democracia republicana.

Um monumento de 100 metros de altura, como o proposto pelo arquiteto, mais um edifício destinado a ser um Memorial dos Ex-Presidentes, certamente quebrarão radicalmente a perspectiva idealizada originalmente. Ao mesmo tempo, é duvidoso pretender colocar, simbolicamente, a “soberania” acima do “povo”. Ainda recordamos a construção, durante a ditadura militar, do mastro da bandeira na Praça dos Três Poderes, a simbolizar a pátria, um valor acima do “povo”.

Nada contra museus e monumentos, na verdade a cidade necessita de muitos, face à ainda precária oferta existente mesmo diante de um turismo cívico, inclusive popular, em crescimento. A Praça da Soberania foi pensada pelo Governo do Distrito Federal como uma forma de presentear a cidade no seu aniversário de 50 anos, comemorando sua importância política, arquitetônica e urbanística. Paradoxalmente, termina se transformando não apenas em um desrespeito ao tombamento do Plano Piloto, mas, face ao constante estado precário de muitos dos monumentos e atrações turísticas de nossa cidade (basta mencionar a Torre de Televisão, a Catedral e o Museu de Arte de Brasília), torna-se também a confirmação de que mais vale construir novas e impressionantes obras do que manter o patrimônio existente.

O que se espera de Oscar Niemeyer e dos governantes de Brasília, como atores importantes para a preservação da cidade, é que façam propostas que não a desfigurem e que, ao contrário, contribuam para a defesa e preservação do seu tombamento. É compreensível o entusiasmo pela proposta arquitetônica que bem pode ser construída em outra área, mas, presentes como a Praça da Soberania são verdadeiros cavalos de Tróia que abrem caminho para uma triste derrota da história de Brasília.

Gustavo Lins Ribeiro
 Professor titular e diretor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília

Texto publicado com a autorização do autor, conforme publicado em 28/01/2009 no

Leia mais sobre a Praça da Soberania em mdc.

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3 respostas para Cavalos de Tróia

  1. disse:

    Ontem, dia 29 de janeiro de 2009, o arquiteto Italo Campofiorito publicou o texto abaixo no Correio Braziliense. Os editores de mdc ainda não conseguiram entrar em contato com o autor para autorizar a publicação.

    Quando o novo não desfigura o moderno

    Por Ítalo Campofiorito*

    Entre os dois Setores Culturais de Brasília, de ambos os lados — Norte e Sul — da Esplanada verde que se estende do Congresso Nacional à Plataforma Rodoviária, propõe agora o arquiteto Oscar Niemeyer a construção de um novo espaço de manifestações públicas que se chamará Praça da Soberania. Os dois setores, um à frente da Catedral e o outro, atrás do Teatro Nacional, estão em fase de implantação e ficariam, não fosse a nova ideia, separados por duas vias de tráfego constante e pelo amplo gramado que cobre o Terrapleno Central dos Ministérios.

    O novo espaço público/espaço plástico é articulado por duas edificações: um memorial para os presidentes da República e um alto elemento escultórico que passa, por assim dizer, de uma base em pirâmide com uso coletivo, ao perfil surpreendente de um obelisco, a apontar para o Congresso Nacional. É este, símbolo emblemático maior da escala cívica da Capital, que já deixa entrever, na outra cabeceira do gramado, a Praça dos Três Poderes e seus famosos palácios.

    Ocorre que, além do espanto que sempre resulta do novo e do inesperado, um outro alarma, de natureza “regulamentar”, tem levantado reclamações dos conservadores mais precavidos e zelosos da comunidade brasiliense. Nem acho que se trate de um “bicho-de-sete-cabeças”, mas de uma questão de interpretações, quanto ao duplo tombamento (Unesco e Iphan) da primeira “cidade moderna” a ser inscrita no Patrimônio da Humanidade. Ao programar tal deliberação, foi com efeito exigido pela Unesco que se fixassem salvaguardas (normas e parâmetros) oficiais para a futura defesa das criações originais. O tombamento pelo Iphan seguiu-se à consagração mundial e repetiu, em duas portarias (1990 e 1992), o texto do Decreto baixado em 1987 pelo GDF. O busilis da atual pendenga estaria em uma dessas disposições (item V, Art. 3°, Portaria 314/92), quando se vedam construções no “canteiro central verde”, na intenção óbvia de evitar futuras edificações espúrias que prejudicassem a integridade visual e artística da Sede do Congresso. Posso testemunhar da intenção, já que a redação em pauta copia a do decreto, que é de minha lavra. A mesma portaria entretanto, considerando que se trata de conjunto urbanístico incompleto (faltavam, por ex, os setores culturais …) pressupõe mais adiante (§ 3º artigo 9) que “excepcionalmente, serão permitidas as propostas para novas edificações encaminhadas pelos autores de Brasília — arquitetos Lucio Costa, Oscar Niemeyer — como complementações necessárias …” etc., etc. É o que estamos vendo acontecer 17 anos depois.

    A problemática de preservar-se uma cidade viva já era tão presente que eu me permito citar artigo que publiquei em Arquitetura Revista, UFRJ (1989), ao defender o tombamento federal: “… Como atender à Unesco e salvaguardar a cidade moderna? Como tombá-la, sem imobilizar fisicamente, mas pelo contrário permitindo — com exceção do resguardo de alguns prédios excepcionais — que as edificações se modifiquem e vivam a sua vida e contingências urbanas, através do passar incessante do tempo, do tempo em que se nutre a natureza cultural das cidades?” Segue o texto, lembrando que a resposta estaria no tombamento (conforme se fez … ) das quatro escalas — a Monumental, a Residencial, a Gregária e a Bucólica — do Plano Piloto, bem como dos parâmetros físicos que as garantissem. Note-se que, no caso presente, a escala monumental (definida, aliás, pela arquitetura de Niemeyer) está indiscutivelmente mantida e enriquecida.

    Entendo, finalmente e sem mais delongas, que a decisão do Iphan evitará qualquer estreiteza de pensamento. O teor de discricionariedade que assiste ao órgão federal não poderia depender apenas da decisão pessoal de um funcionário, ainda que altamente colocado no instituto. Sem decisão ampla, acompanhada pelo colegiado de consultores de que dispõe a presidência do Iphan, arrisca-se a controvérsia a um tal antagonismo, que só a Justiça poderia dirimir.

    * Arquiteto e urbanista, especialista em Estética, História e Sociologia da Arte, Planejamento Rural e Urbano, arquiteto da Novacap e, no Iphan, assinou o Tombamento de Brasília.

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