Quando o novo não desfigura o moderno

Sobre o projeto da Praça da Soberania, de Oscar Niemeyer.

Ítalo Campofiorito

Entre os dois Setores Culturais de Brasília, de ambos os lados — Norte e Sul — da Esplanada verde que se estende do Congresso Nacional à Plataforma Rodoviária, propõe agora o arquiteto Oscar Niemeyer a construção de um novo espaço de manifestações públicas que se chamará Praça da Soberania. Os dois setores, um à frente da Catedral e o outro, atrás do Teatro Nacional, estão em fase de implantação e ficariam, não fosse a nova ideia, separados por duas vias de tráfego constante e pelo amplo gramado que cobre o Terrapleno Central dos Ministérios.

O novo espaço público/espaço plástico é articulado por duas edificações: um memorial para os presidentes da República e um alto elemento escultórico que passa, por assim dizer, de uma base em pirâmide com uso coletivo, ao perfil surpreendente de um obelisco, a apontar para o Congresso Nacional. É este, símbolo emblemático maior da escala cívica da Capital, que já deixa entrever, na outra cabeceira do gramado, a Praça dos Três Poderes e seus famosos palácios.

Ocorre que, além do espanto que sempre resulta do novo e do inesperado, um outro alarma, de natureza “regulamentar”, tem levantado reclamações dos conservadores mais precavidos e zelosos da comunidade brasiliense. Nem acho que se trate de um “bicho-de-sete-cabeças”, mas de uma questão de interpretações, quanto ao duplo tombamento (Unesco e Iphan) da primeira “cidade moderna” a ser inscrita no Patrimônio da Humanidade. Ao programar tal deliberação, foi com efeito exigido pela Unesco que se fixassem salvaguardas (normas e parâmetros) oficiais para a futura defesa das criações originais. O tombamento pelo Iphan seguiu-se à consagração mundial e repetiu, em duas portarias (1990 e 1992), o texto do Decreto baixado em 1987 pelo GDF. O busilis da atual pendenga estaria em uma dessas disposições (item V, Art. 3°, Portaria 314/92), quando se vedam construções no “canteiro central verde”, na intenção óbvia de evitar futuras edificações espúrias que prejudicassem a integridade visual e artística da Sede do Congresso. Posso testemunhar da intenção, já que a redação em pauta copia a do decreto, que é de minha lavra. A mesma portaria entretanto, considerando que se trata de conjunto urbanístico incompleto (faltavam, por ex, os setores culturais …) pressupõe mais adiante (§ 3º artigo 9) que “excepcionalmente, serão permitidas as propostas para novas edificações encaminhadas pelos autores de Brasília — arquitetos Lucio Costa, Oscar Niemeyer — como complementações necessárias …” etc., etc. É o que estamos vendo acontecer 17 anos depois.

A problemática de preservar-se uma cidade viva já era tão presente que eu me permito citar artigo que publiquei em Arquitetura Revista, UFRJ (1989), ao defender o tombamento federal: “… Como atender à Unesco e salvaguardar a cidade moderna? Como tombá-la, sem imobilizar fisicamente, mas pelo contrário permitindo — com exceção do resguardo de alguns prédios excepcionais — que as edificações se modifiquem e vivam a sua vida e contingências urbanas, através do passar incessante do tempo, do tempo em que se nutre a natureza cultural das cidades?” Segue o texto, lembrando que a resposta estaria no tombamento (conforme se fez … ) das quatro escalas — a Monumental, a Residencial, a Gregária e a Bucólica — do Plano Piloto, bem como dos parâmetros físicos que as garantissem. Note-se que, no caso presente, a escala monumental (definida, aliás, pela arquitetura de Niemeyer) está indiscutivelmente mantida e enriquecida.

Entendo, finalmente e sem mais delongas, que a decisão do Iphan evitará qualquer estreiteza de pensamento. O teor de discricionariedade que assiste ao órgão federal não poderia depender apenas da decisão pessoal de um funcionário, ainda que altamente colocado no instituto. Sem decisão ampla, acompanhada pelo colegiado de consultores de que dispõe a presidência do Iphan, arrisca-se a controvérsia a um tal antagonismo, que só a Justiça poderia dirimir.

Ítalo Campofiorito

Arquiteto e urbanista, especialista em Estética, História e Sociologia da Arte, Planejamento Rural e Urbano, arquiteto da Novacap e, no Iphan, assinou o Tombamento de Brasília.

Texto publicado com a autorização do autor, conforme publicado em 29/01/2009 no

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