Sobre o projeto da Praça da Soberania.
Oscar Niemeyer
Hoje resolvi pensar melhor sobre esta celeuma que ha tanto tempo ocupa os jornais de Brasília. Na verdade, o que não tem sido tão bem explicado, o que mais me incomoda, é o contraste que existe entre os que em Brasília moram confortavelmente e os três milhões de brasileiros abandonados nas cidades-satélites. Um contraste que dá a impressão de esta cidade estar dividida entre pobres e ricos.
E fico a pensar que JK contra isso se levantaria, ele, que, generoso como era, sempre pensou numa capital acolhedora para todos. Mas o contraste existe, e intervir nas cidades-satélites é o indispensável para mim.
Pouco a pouco nesses artigos que saem nos jornais todo dia a polemica em torno do meu projeto vai assumindo proporções diferentes – uns, mais competentes, mantendo as discussões no nível desejado, outros, tão medíocres que dispensam resposta.
De toda a parte recebo cartas de pessoas interessadas no assunto, que se propõem a defender meu ponto de vista sobre a nova praça por mim criada,na escala que uma capital como Brasília necessita. Mas esta celeuma começa a me cansar, mesmo compreendendo que devo defender meu trabalho.
Sinto que a discussão parece se deteriorar, alguns procurando discutir a localização do meu projeto, e eu sem animo para falar do Plano Piloto, que sempre defendi e não quero criticar. Uma situação que não me agrada, dando-me até vontade de dar por encerrada esta querela.
No entanto, quero insistir, junto ao Governador José Roberto Arruda, que atenda o pedido que lhe fiz de criar uma comissão de arquitetos da maior categoria, que sobre os problemas da arquitetura e do urbanismo de Brasília se manifestem, sugerindo as soluções que achem justo adotar. Sobretudo nas cidades-satélites, que, independentes que são do Plano Piloto, exigem a adoção de medidas indispensáveis – propondo, quem sabe, aquela comissão um rigoroso processo seletivo de projetos, capaz de assegurar-lhes uma arquitetura de melhor qualidade.
Num artigo anterior, lembrei como as cidades de todo o mundo vêm sofrendo alterações, citando com detalhes o que ocorreu na França, Espanha e nos Estados Unidos, mencionando, inclusive, que, se o Rio de Janeiro fosse tombado, o prefeito Pereira Passos, derrubando prédios e morros, não teria construído a avenida que Le Corbusier, de passagem por essa capital, elogiou com tanto entusiasmo.
O que me satisfaz é constatar que ninguém negou a qualidade do Plano Piloto de Lúcio, nem a do meu projeto, tão louvada nas declarações do arquiteto Claudio Queiroz e nos artigos publicados por alguns amigos, tais como Lelé, Glauco Campello e Italo Campofiorito. O meu projeto continua a ser desenvolvido na minha prancheta, eu disposto a defendê-lo como se impõe, embora a sua execução dependa tão-somente do Governo do Distrito Federal.
Se o Governador José Roberto Arruda criar a comissão que lhe sugeri, dou por bem sucedida esta luta que meus colegas arquitetos, queridos companheiros dos velhos tempos de Brasília, junto comigo estão travando.
Oscar Niemeyer
Arquiteto
Texto enviado pelo autor, e também publicado em 01/02/2009 no .
Leia mais sobre a Praça da Soberania em mdc.
No dia 2 de fevereiro de 2009, o jornal Folha de S.Paulo publicou a entrevista que transcrevemos abaixo.
Tombamento de Brasília é uma besteira
Para arquiteto, há uma divisão entre ricos e pobres na capital do país; cidades-satélites são “uma grande favela”, afirma ele
DENISE MENCHEN
DA SUCURSAL DO RIO
Alvo de críticas desde que apresentou o projeto de construção da Praça da Soberania, em Brasília, o arquiteto Oscar Niemeyer, 101, rebate chamando de uma “besteira” o tombamento da cidade que impede a nova obra. “Isso é uma mentira, uma besteira, porque advogados já disseram que eu tenho todo o direito de fazer uma intervenção. (…) Se o Rio fosse tombado, o [ex-prefeito] Pereira Passos não teria feito essa avenida fantástica [Rio Branco] (…) As cidades sempre acabam sendo modificadas, queira ou não queira.”
Niemeyer recebeu a Folha para uma conversa em seu escritório na Avenida Atlântica, zona sul do Rio, anteontem.
Desgostoso com a celeuma criada em torno do projeto, ele parecia ansioso para rebater os ataques de que se viu alvo nas últimas semanas. Acendeu um cigarro, pediu à repórter um tempo “para respirar” e, pouco depois, sem abrir espaço para a primeira pergunta, pôs-se a comentar o último capítulo da polêmica: a proposta de criação de uma comissão de notáveis para assessorar o governo do Distrito Federal nas questões que envolvem a arquitetura e o urbanismo da região.
OSCAR NIEMEYER – Eu não quero mexer no Plano Piloto, como dizem por aí. O que nós queremos é tirar de Brasília a ideia de que é uma cidade dividida entre pobres e ricos. Os que moram em Brasília moram confortavelmente, em apartamentos bons, com bons serviços. Mas os que moram nas cidades-satélites estão completamente abandonados. É horrível, uma grande favela. É um contraste que nós, arquitetos que nos interessamos por problemas políticos, não podemos aceitar. A comissão serviria para assessorar o governador sobre o que pode ocorrer em relação ao urbanismo e à arquitetura, para que sejam construídos prédios modernos, com tudo o que falta lá, como escolas, creches, serviços de saúde, centros de diversão e esporte, tudo isso. O Juscelino [Kubitschek, ex-presidente responsável pela construção de Brasília], um homem generoso como era, não permitiria o que está se passando nas cidades satélites. Ele nunca aceitaria uma cidade que parece dividida entre pobres e ricos.
Se o Juscelino estivesse vivo, ele ia ficar do meu lado.
FOLHA – Então, a questão da praça é até secundária nessa discussão?
NIEMEYER – A praça é indispensável. Toda a cidade tem uma praça mais importante, monumental. Mas isso é secundário.
FOLHA – Porque o senhor considera a praça indispensável?
NIEMEYER – Falta a Brasília uma praça importante, como em todas as cidades do mundo existe.
Você vai a qualquer capital do mundo e vê isso, mas em Brasília não. E a praça é muito boa.
Primeiro por causa do estacionamento para 3.000 carros. E depois porque ela é bonita, monumental. Tem o projeto do memorial dos presidentes e o triângulo que tem dois andares para uma grande exposição mostrando o desenvolvimento do país e que depois vai se transformando no monumento. Seria tão bonita. E uma cidade tem que ter isso. O sujeito chega e tem que se espantar com a grandeza que ela apresenta. Brasília está um pouco modesta diante desse país que cresce com tanto entusiasmo.
FOLHA – Mas como o senhor vê o argumento do superintendente do Iphan no Distrito Federal, segundo o qual o projeto é ilegal porque fere o tombamento da cidade?
NIEMEYER – Isso é uma mentira, uma besteira, porque os advogados mais importantes já disseram que eu tenho todo o direito de fazer uma intervenção. E todas as cidades do mundo sofreram modificações. Paris, Barcelona, Nova York, todas sofreram modificações. No Brasil, por exemplo, se o Rio fosse tombado, o [ex-prefeito] Pereira Passos não teria feito essa avenida fantástica [Rio Branco] que o [arquiteto franco-suíço] Le Corbusier elogiou com tanto entusiasmo. As cidades sempre acabam sendo modificadas, queira ou não queira. Sempre aparece uma coisa nova que obriga a modificação.
FOLHA – Então Brasília não foi pensada como uma obra pronta?
NIEMEYER – Foi. Mas, como todas as cidades, ela é sujeita a modificações. Uma cidade não pode ser tombada, porque sempre aparecem modificações. Se Paris fosse tombada, não existiria a Champs-Élysées nem o Arco do Triunfo. Se Barcelona fosse tombada, a cidade não teria se voltado naturalmente para o mar. Se Nova York fosse tombada, não existiriam os arranha-céus que ocuparam a cidade horizontal que antes existia. Uma cidade tombada é ignorância. As modificações são inevitáveis, e Brasília ainda vai passar por muitas delas. O tempo obriga a isso.
FOLHA – Mas a praça não poderia ser construída em outro local que não o canteiro central do Eixo Monumental?
NIEMEYER – Não. Ali é o lugar certo, não está perturbando nada e não interfere no plano de Brasília. E eu tive o apoio dos arquitetos mais importantes do país. Bastava o depoimento do Lelé [João Filgueiras Lima], que é o arquiteto mais importante do Brasil, para eu me satisfazer. E teve ainda outros arquitetos mais antigos, inclusive os que trabalharam na parte de urbanismo com o Lúcio [Costa], que se manifestaram a meu favor. O Glauco Campello, o Ítalo Campofiorino, o [José] Leal, o [Luiz] Marçal, o Jayme Zettel, todos foram da equipe mais antiga de Brasília e se manifestaram a meu favor.
FOLHA – Mas o projeto recebeu críticas da filha do Lúcio Costa. Para Maria Elisa Costa, a construção da praça poderia acabar servindo como pretexto para a alteração da legislação de tombamento, o que “abriria a cancela para as bobagens dos mal-intencionados”. O senhor acha que esse risco existe?
NIEMEYER – Eu não quero dizer uma palavra contra ela. Ela pode dizer o que ela quiser, é uma pessoa amiga e amizades antigas eu não costumo ofender.
FOLHA – E o que o senhor acha da crítica de que o projeto atrapalharia a visão da rodoviária?
NIEMEYER – Começa que a rodoviária não é um prédio importante. O que caracteriza Brasília são os palácios. A rodoviária é o prédio que em geral não está no centro, que fica discreto no canto da cidade. Não precisa ter importância. E, pelo projeto, o prédio mais próximo da rodoviária fica a 400 m de distância.
FOLHA – O senhor acha que o Lúcio Costa apoiaria o projeto?
NIEMEYER – Lógico. Ele era um homem inteligente. Ia gostar da contribuição, que dá muito mais força a Brasília. Faz falta em Brasília um aspecto de mais força arquitetônica.
FOLHA – Mas a população da cidade parece estar contra o projeto. Numa enquete do “Correio Braziliense”, mais de 70% responderam contrariamente à obra.
NIEMEYER – Ah, isso foi uma enquete ridícula. É tão fácil fazer uma enquete assim. Nem me interessei por isso.
FOLHA – E como o senhor recebeu a crítica do líder do PT na Câmara, Maurício Rands? Ao saber do projeto, ele reclamou da distância que separa o anexo 4 do plenário e disse que o senhor é “ruim de serviço”…
NIEMEYER – Eu não vou responder para ele. Não me interessa a opinião dele.
FOLHA – O senhor esperava que o projeto suscitasse tantas reações apaixonadas?
NIEMEYER – Esperava, lógico. O problema é que eles falam sobre o meu trabalho e eu não quero criticar o Plano Piloto.
Eu evito falar, mas podia, porque todo projeto tem coisas para se discutir. O que me interessa é que os arquitetos mais importantes do Brasil ficaram do meu lado, inclusive os que trabalharam no plano do Lúcio. Só que já estou um pouco cansado dessa discussão. Perco muito tempo, e estou com trabalhos por toda parte. Na Itália, na França, até no Cazaquistão…
FOLHA – O senhor ficou decepcionado com os críticos do projeto?
NIEMEYER – Não, briga é assim mesmo. Não estou com ódio de ninguém. E, quando a pessoa é inteligente e dá para conversar, tudo bem. Agora, quando é ignorante ou tem a petulância que só a falta de conhecimento provoca, aí a gente nem responde. E a briga nos permitiu uma coisa importante, que foi essa proposta de criação de uma comissão de arquitetos de alto nível para se ocupar dos problemas do urbanismo e da arquitetura na cidade. Não tem nada de especial, mas é algo que faltava para o acompanhamento do que está acontecendo e a proposição de soluções mais justas, com planos inteligentes para as cidades-satélites.
FOLHA – E em relação à praça, o senhor acha que ela irá sair do papel?
NIEMEYER – Não sei. O projeto foi feito. Está bem estudado, com tudo resolvido. Agora não é comigo. Minha obrigação é defendê-lo. Se sair, melhor para mim. Se não, dá no mesmo. Mas ele não compromete o Plano Piloto e dá mais beleza, mais força arquitetônica à cidade.
Niemeyer não pode comparar o plano piloto à Paris de Hausman, nem ao Rio de Pereira Passos. A realidade e o contexto são totalmente diferentes. Tenho minhas dúvidas quanto ao tombamento da cidade em si, mas me preocupo com a preservação deste inestimável acervo de obras modernas. Aqui em João Pessoa, Paraíba, por negligência dos ógãos de proteção do patrimônio histórico foram aniquiladas importantíssimas obras modernistas com a Residências Otacílio Campos () e a Residência Cassiano Ribeiro Coutinho () do arquiteto Acácio Gil Borsói.
Niemeyer é uma pessoa inteligentíssima e admirável, porém seu discurso tem denotado muitas contradições e inconsistências. Falar que Brasília é uma cidade de ricos é um fato, mas daí a querer passar a idéia de que o projeto da praça iria diminuir essa segregação é um absurdo. Me espanta ainda o fato dele insistir que Brasília precisa de uma praça pra causar espanto nas pessoas.
Brasília toda por si só já causa um enorme impacto e encantamento aos olhares de qualquer cidadão do mundo. Não precisa acrescentar-lhe mais nada neste sentido.
Também considero deselegante da parte dele diminuir a obra do Lúcio Costa. Como se toda a arquitetura precisasse ser monumental para ser importante. Prefiro a rodoviária, implantada respeitosa e silenciosamente próxima a Esplanada dos Ministério, servindo-lhe de mirante para o espetáculo arquitetônico do brilhante arquiteto, do que a fria e espalhafatosa estrutura de concreto da Soberania.
Pingback: Praça da Soberania: crônica de uma polêmica « mdc . revista de arquitetura e urbanismo
Pingback: