Sobre o projeto da Praça da Soberania, de Oscar Niemeyer.
Andrey Rosenthal Schlee
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Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo entendimento. Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Eu sou uma pergunta.
(Clarice Lispector)
Depois de ler Clarice Lispector fiquei a pensar. Pensar e a pensar. Rendo-me! Não quero mais entender. Mas necessito… E foi lendo um pouco mais Clarice que (re)encontrei De Chirico e pude entender. Não por meio daquele artista que, em 1945, pintou um retrato da escritora. Retrato bem comportado… (acadêmico diriam alguns). Reencontrei foi Giorgio de Chirico[1] – aprendi que se pronuncia De Quírico – o homem de vanguarda que nas primeiras décadas do século XX surpreendeu a todos por sua inventividade e por sua particular forma de expressão. O artista greco-italiano que criou a chamada pintura metafísica, simultaneamente reconhecível e irreal (ela cria uma outra realidade). Uma pintura onde as “coisas estão dispensadas de lógica funcional e situadas no mágico sossego de seu isolamento.“[2] Uma obra forte que inventa cenários arquitetônicos monumentais, que trabalha com perspectivas forçadas e construções com formas puras, que manipula objetos de memória, que realiza “composições originais de luzes misteriosas, sombras sedutoras, cores ricas e profundas, de plástica despojada e escultural.”[3] Pinturas intrigantes, elaboradas entre 1910 e 1917, nas quais o homem é coadjuvante. É anônimo e está isolado (dizem melancólico). Homens que vagam entre as construções de uma cidade quase vazia. Edifícios depositados sobre base neutra, como numa cenografia. De Chirico recordava que, estando sentado na praça de uma cidade italiana, olhando fixamente para uma estátua, percebeu “toda a cena banhar-se numa luz extraordinariamente clara, alucinatória, dotada de uma enigmática intensidade, que logo desejou reproduzir nas suas pinturas.”[4] Era a luz de Le Corbusier! A luz que banha os objetos e que cria a arquitetura como o “jogo sábio, correto e magnífico dos volumes reunidos sob a luz” (1923).[5] Uma definição de arquitetura que “não supõe o homem e a atividade humana como seu objetivo e destino.”[6] Para ilustrá-la e enfatizá-la, Le Corbusier redesenhou (mas de forma ideal) uma porção de um mapa de Roma de 1700. Duas pirâmides, o Circo de Nero com seu obelisco central, o mausoléu de Adriano (atual Castel Sant’Angelo) e parte do Coliseu. Para não deixar dúvidas quanto a sua intenção, na parte superior do desenho deixou grifados um cilindro, uma pirâmide, um cubo, um paralelepípedo e uma esfera. As formas puras, ou os famosos sólidos platônicos, que tanto lhe agradavam e agradaram outros importantes arquitetos. Formas que se expressam, interagem e são realçadas sob a luz. Efeito que o próprio Le Corbusier vivenciou em Atenas, quando de sua visita ao Partenon. Disse ele: “A Acrópole, cujo topo plano suporta os templo, cativa o interesse como pérola em sua valva. Recolhe-se do chão a valva por causa da pérola. Os templos são a razão dessa paisagem. Quanta luz!”[7] Sim, para destacar a arquitetura, retira-se a concha ou tudo que, de alguma forma, poderá impedir a exibição plena da pérola. E os objetos puros passam a ser depositados sobre bases alvas e neutras (praças ou plataformas secas) – como nas pinturas de De Chirico e nos projetos de Oscar Niemeyer. No caso do genial arquiteto brasileiro, nem sempre foi assim, como atestam o Ministério da Educação e Saúde (um oásis no meio da cidade tradicional), o conjunto da Pampulha (um passeio pitoresco ao longo da lagoa), a Casa de Canoas (uma clareira na floresta), ou a Residência Cavanelas (uma longa tenda no imenso jardim de Burle Marx). Provavelmente, Niemeyer lançou mão, pela primeira vez, da estratégia da base neutra no projeto para a Sede da ONU em Nova York (1947, denominado de Estudo 32). Em sua proposta, compondo com os diferentes volumes, criou a Praça das Nações Unidas, uma grande plataforma, sobre a qual foram depositados os edifícios do Secretariado, das Delegações e da Assembléia Geral (Le Corbusier, surpreendido, assistiu a tudo). Em Brasília, onde a sua arquitetura se fez mais rigorosa pela “preocupação de mantê-la em perímetros regulares a definidos”[8], Niemeyer continuou a fazer uso das plataformas (na Capela do Palácio da Alvorada, no Congresso Nacional, na Catedral e na Praça Maior da UnB, por exemplo). Outros projetos foram desenvolvidos com a mesma estratégia, principalmente quando a expressão da monumentalidade era um requisito e Niemeyer o urbanista, como atestam os projetos desenvolvidos para Negev (1964), Argel (1968), Constantine (1969), Miami (1972), Vicenza (1978) e Trípoli (1981), para só citar obras internacionais. Durante a década de 80, Niemeyer produziu dois mega projetos para São Paulo: o Plano de Reurbanização da Margem do Rio Tietê[9] (1985), para o prefeito Jânio Quadros, e o Memorial da América Latina (1987-89), para o governador Orestes Quércia. Em comum, ambos apresentam praças cívicas secas e geraram estrondosa polêmica. Nunca antes Niemeyer havia enfrentado tantas críticas de seus colegas de profissão. Mesmo assim, o Memorial foi executado passando a representar uma espécie de divisor de águas na obra do arquiteto. Na oportunidade, em texto enviado à revista Projeto[10], Niemeyer apresentou seus novos parâmetros projetuais: (1) “estruturas ousadas e simples ao mesmo tempo“, (2) “apuro técnico e a forma inovadora” e (3) “nada de detalhes, nada de filigranas“. E as bases neutras ou plataformas voltaram a ser empregadas no Caminho Niemeyer (Niterói), no Conjunto Cultural da República (Brasília), no Centro Cultural Oscar Niemeyer (Goiânia), no Centro Cultural de Valparaiso (Chile), no Centro Cultural Príncipe de Astúrias em Avilé (Espanha), chegando à denominada Praça da Soberania. Mais um projeto apoiado em tapete de concreto, mais uma forma forte e reconhecível, mais uma obra que inventa um cenário monumental, mais uma perspectiva forçada, mais um conjunto de construções de formas puras (certamente sem detalhes e filigranas) sob a ação implacável do sol de Brasília. Sob a luz de Le Corbusier e como em uma pintura de De Chirico! Para finalizar, e ainda sobre a Praça da Soberania, gostaria de resgatar um outro texto de uma autora importante, que nos fala das coisas da arquitetura e do urbanismo, e nos faz pensar:
Liberdade virou um lugar-comum neste fim do século. Na arquitetura também. Formas livres, espaços livres, programas abertos, flexibilidade são motes comuns no vocabulário de nossa arquitetura moderna, junto com outras abstrações como terreno ideal e a verba ilimitada. Ao mesmo tempo, nada é mais fixo e pouco mutável que uma obra de arquitetura. Ela está lá, alterando a paisagem, você tem que a enxergar, contornar, ultrapassar, cruzar ou interromper seu passo. Não há opção. Ela pesa milhares de toneladas, ela não é facilmente modificável, ela dura dezenas de anos.
(Ruth Verde Zein) [11]
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fotos de Andrey Schlee
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notas
[1] Giorgio De Chirico (1888-1979). Pintor greco-italino, fundador, com Carlo Cará, da Pintura Metafísica. Curiosamente, uma obra sua foi exposta no Pavilhão Brasileiro da Exposição de Nova York de 1939. Expôs também nas Bienais de São Paulo de 1957, 1959 e 1965. Pintou Clarice Lispector, foi professor de Iberê Camargo e influenciou Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Di Cavalcanti, Cândido Portinari e Milton Dacosta.
[2] THOMAS, Karin. Diccionario del arte actual. Barcelona: Labor, 1976. p.160.
[3] CHARMET, Raymond. Dicionário da arte contemporânea. Rio de Janeiro: Larousse,1969. p.88.
[4] DE CHIRICO citado por ADES. Dawn. O Dada e o Surrealismo. Barcelona: Labor, 1976. p.45.
[5] LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1973.
[6] GUEDES, Joaquim. 1989, Oscar Niemeyer na Barra Funda, em São Paulo. Projeto, Rio de Janeiro, n.136, nov., 1990. p.100.
[7] LE CORBUSIER. A viagem do Oriente. São Paulo: Cosac Naify, 2007. pp.183-4.
[8] NIEMEYER, Oscar. A forma na arquitetura. Rio de Janeiro: Avenir, 1978. p.42.
[9] Desenvolvido por Oscar Niemeyer, Haron Cohen, Helio Pasta, Helio Penteado, Julio Katinsky, Maria Cecília Scharlach, Ruy Ohtake e Walter Makhohl.
[10] NIEMEYER, Oscar. Ato de fé e solidariedade. Projeto, Rio de Janeiro, n.120, abril, 1989. p.66.
[11] ZEIN, Ruth Verde. Descubra os sete erros. Projeto, Rio de Janeiro, n.120, abril, 1989. p.72.
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Andrey Rosenthal Schlee
Arquiteto e urbanista, professor do Departamento de Teoria e História da Faculdade de Arquitetura e urbanismo da UnB.
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Gostei muito da sua observação, Andrey.
Finalmente (que vergonha) te conhecendo…
Me identifico com seu olhar…
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