Sobre o projeto da Praça da Soberania, de Oscar Niemeyer.
Hugo Segawa
O título no Correio Braziliense poderia sugerir que a proposta de intervenção arquitetônica em debate em Brasília é um problema policial: “MPF vai apurar legalidade do projeto de Oscar Niemeyer para a Praça da Soberania”, Acuado ante as reações, o velho mestre, em entrevista para a Folha de S. Paulo, compreensivelmente desabafou: “Tombamento de Brasília é uma besteira”. Vindo de quem veio, a afirmação pode ter desdobramentos que extrapolam o debate sobre a Praça da Soberania e causar mal-entendidos ou manipulações acerca da instituição do tombamento.
Cumpriram suas responsabilidades os técnicos vinculados às instituições de Patrimônio Cultural ao evocarem as normas para questionarem a proposta de Niemeyer. Rezam os dispositivos legais que a área onde o arquiteto situou a Praça da Soberania é considerada non-ædificandi. Para leitores desprevenidos, a discussão pode parecer um emaranhado de filigranas jurídicas. Todavia, por trás da frieza e impenetrabilidade das leis, decretos e portarias relativas à preservação, há uma construção conceitual que não é labor apenas dos legisladores, mas obra fundamentada em valores culturais, arquitetônicos e urbanísticos que dão sentido e razão à regra jurídica. Entender esses valores, para além da hermenêutica jurídica, requer compreender as circunstâncias que motivaram a criação dessas regras, as exposições de motivos, perceber os conteúdos presentes nos momentos decisivos para apurar as referências em torno da polêmica da Praça da Soberania.
Em tempos recentes, o nome de Lucio Costa tem ficado injustamente na sombra. Não há dúvida que a Brasília de Lucio Costa, sem os marcantes edifícios de Niemeyer, não teria as qualidades que o Plano-Piloto ostenta. Mas o que seria da Brasília de Niemeyer sem a imaginação urbanística de Costa?
Niemeyer e Costa em Brasília são indissociáveis. Mas distinguíveis. O plano urbano vencedor do concurso nacional julgado em 1957 é de exclusiva concepção de Lucio Costa. Naquela ocasião, os dois estavam em campos opostos: o primeiro submeteu sua idéia ao júri; o segundo, como membro da comissão julgadora, elegeu vencedora a proposta do primeiro. Portanto, Niemeyer não teve qualquer participação na idéia original da cidade. Brasília foi inaugurada seguindo as diretrizes urbanísticas de Lucio Costa, e Oscar Niemeyer – apontado por Juscelino Kubitschek como arquiteto dos edifícios governamentais – soube valorizar as diretrizes, que foram implementadas com alterações, mas obedientes à maioria dos princípios originais.
Os anos da ditadura foram os de consolidação de Brasília e marcados pelo afastamento de Niemeyer e Costa, que, solitariamente, defendia à distância sua criação. Foi com o fim do autoritarismo militar e a ascensão de José Aparecido de Oliveira no Governo do Distrito Federal em 1985 que Costa e Niemeyer reataram suas relações com a capital. Mais do que repatriar seus criadores, Aparecido foi o entusiasta pela inclusão de Brasília na listagem do Patrimônio da Humanidade da Unesco. Foi um grande desafio. A candidatura de Brasília foi a primeira postulação de uma obra com princípios da arquitetura e urbanismo modernos a ser examinada pelo Comitê do Patrimônio Mundial. O reconhecimento de Brasília criou o precedente para a inclusão de monumentos do século 20, até então ausentes na lista da Unesco.
Mas a postulação de Brasília não foi imediatamente acatada na reunião do Comitê em junho de 1987. O parecer de Léon Pressouyre avaliando o mérito da candidatura ponderava: “O ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios), ao mesmo tempo que expressa um parecer em princípio favorável à inscrição de Brasília na lista to Patrimônio Mundial, estima que essa inscrição deva ser adiada até que medidas mínimas de proteção garantam a salvaguarda da criação urbana de Costa e Niemeyer”. Imediatamente José Aparecido providenciou a elaboração de uma normativa, o Decreto nº 10.829/87, especificamente tratando da “preservação da concepção urbanística de Brasília”. Com essa regulamentação, atendeu-se à exigência do Comitê do Patrimônio Mundial e em sua reunião de dezembro de 1987, A Unesco inscreveu a cidade na lista do Patrimônio Mundial, justificada por “representar uma obra artística única, uma obra-prima do gênio criativo humano” e “ser exemplar marcante de um tipo de construção ou conjunto arquitetônico que ilustre um estágio significativo da história da humanidade”.
O decreto nº 10.829 que avalizou o reconhecimento da Unesco é a base de tudo se elaborou doravante sobre a preservação da cidade. Um de seus incisos aciona a polêmica sobre a Praça da Soberania: “Os terrenos do canteiro central verde são considerados non-ædificandi nos trechos compreendidos entre o Congresso Nacional e a Plataforma Rodoviária.” Qual a origem dessa restrição? Já na justificativa apresentada em 1956, Lucio Costa prescrevia que “a perspectiva de conjunto da esplanada deve prosseguir desimpedida até além da plataforma onde os dois eixos urbanísticos se cruzam”. É reiterada de forma mais evidente no relatório Brasília revisitada 1985/1987: complementação, preservação, adensamento e expansão urbana, parecer solicitado por José Aparecido para orientar sua administração. Ao descrever as características fundamentais do Plano-Piloto, Costa afirma: “A escala monumental comanda o eixo retilíneo – Eixo Monumental – e foi introduzida através da aplicação da ‘técnica milenar dos terraplenos’ (Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios), da disposição disciplinada porém rica das massas edificadas, das referências verticais do Congresso Nacional e da Torre de Televisão e do canteiro central gramado livre de ocupação que atravessa a cidade do nascente ao poente.” (grifo meu). Brasília Revisitada foi a manifestação final de Lucio Costa sobre o futuro da cidade. Foi nela que as autoridades do GDF buscaram fundamentos para a elaboração das diretrizes de preservação. A norma jurídica traduz a vontade expressa do autor do projeto de Brasília, cujo teor o urbanista reproduziu adaptado em seu livro Registro de uma Vivência, arrematando: “como se vê trata-se, em suma, de respeitar Brasília. De complementar com sensibilidade e lucidez que ainda lhe falta, preservando o que de válido sobreviveu”. (grifo de Costa).
Para concluir, ressalto a imaginação criativa de Lucio Costa. Há um trecho pouco lembrado da memória do concurso de 1956 no qual o urbanista antevê uma situação que sempre considerei de extremo requinte. Refere-se aos que partem da Plataforma Rodoviária (“traço de união do complexo urbano”): “o sistema de mão única obriga os ônibus na saída a uma volta, num ou noutro sentido, fora da área coberta da plataforma, o que permite ao viajante uma última vista do eixo monumental da cidade antes de entrar no eixo rodoviário-residencial, – despedida psicologicamente desejável” (grifo de Costa). A realidade confirmou a antevisão. Que refinamento, entre tantas passagens dessa justificativa de projeto, ao mesmo tempo concisa no conjunto e delicada nas minúcias. Se a Praça da Soberania viesse a soerguer-se no local originalmente planejado, o viajante não mas vislumbraria o eixo monumental. Veria a fachada envidraçada do Memorial dos Presidentes.
Hugo Segawa
Arquiteto, professor livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
Texto enviado pelo autor, e também publicado em 08/02/2009 no .
Leia mais sobre a Praça da Soberania em mdc.
Caro Hugo,
gostei de ler seu artigo, mas devo dizer que desconfio que Lucio Costa e Oscar Niemyer não estivessem exatamente “em campos opostos” na ocasião do concurso, como você diz. Não podemos esquecer que os projetos foram entregues com identificação do autor, e considerando que ambos já haviam trabalhado juntos, é difícil acreditar que não tenha havido alguma espécie de diálogo (mesmo que sem palavras) entre os dois. Penso, isto sim, que havia então uma forte convergência de interesses, que por tantos motivos acabou se mostrando insustentável – o que a incompreensão da concepção urbanística de Lucio Costa por parte de Niemeyer apenas confirma, mais uma vez.
Um abraço,
Ana Luiza Nobre
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