Sobre projetos executivos e detalhes

Danilo Matoso Macedo

A partir da próxima matéria, a seção Projetos e obras da revista mdc passará a disponibilizar arquivos com o Projeto Executivo – ou Projeto de Execução – completo. Entendemos que, com isso, amplia-se significativamente a relevância do material publicado. Ao acrescentar informação sobre as técnicas projetuais e construtivas adotadas na feitura da obra, procuramos trazer alguma contribuição ao delineamento de novos horizontes na crítica e de historiografia de nossa prática arquitetônica atual. Esperamos que uma nova crítica se forme e que nossa teoria se renove a partir da sistematização e da transmissão didática de um campo de conhecimento que até hoje tem sua cultura reproduzida quase que exclusivamente pela prática nos escritórios – ao menos no Brasil. Esse medievalismo cultural da arquitetura talvez mereça aqui uma pequena digressão, necessária à explicitação de nossas intenções.

arquitetura é invenção – de problemas?

Entablamento e capitel jônico, segundo o tratado de Vignola (1562)

Desde o surgimento, no século XV, do livro de arquitetura tal como o conhecemos hoje, nossa disciplina vem sendo transmitida majoritariamente por meio de textos, gravuras ou fotos naturalistas e desenhos técnicos simplificados de modo a caber nos formatos dos livros. Substituíam-se, e principalmente complementavam-se, com isso, os códices das corporações de ofício e as lições práticas por tratados de arquitetura concebidos e editados quase que à guisa de literatura. A cultura do livro impresso multiplicável foi componente ativo da revolução humanística da Idade Moderna no mundo ocidental. E as conseqüências da difusão arquitetônica completamente dissociada de qualquer contato direto com os edifícios, por assim dizer, prototípicos, levou em muitos casos à redução do escopo de nossa disciplina ao que pode ser transmitido por meio de livros e revistas: textos, imagens naturalistas e desenhos técnicos esquemáticos simplificados de escala reduzida. Os tratados da Renascença definem as “ordens” de arquitetura (colunas, capitéis, lintéis etc.) carentes de peso material. De que são feitos? Madeira, mármore, pedra, tijolo, estuque? Como são feitos? Por quem? Com que instrumentos? A que preço? Os livros não nos dizem. [1]

Com isso, a profissão e o profissional deslocavam-se do canteiro de obra dos artesãos para as côrtes dos nobres, dos intelectuais e sobretudo dos artistas. O desenho erudito desenvolvido junto à geometria descritiva acaba por se relacionar mais às especulações matemáticas e científicas do Iluminismo que à manufatura de edifícios e de seus componentes construtivos. Estes têm sua conformação ajustada à base de cinzéis, lixadeiras, desempenadeiras, sarrafos, gabaritos e outros instrumentos rudimentares para os quais as geometrias complexas advindas de equações espaciais fazem pouco sentido. Como nos lembra Alfonso Corona Martínez, os arquitetos do Renascimento inventaram uma competência profissional a partir dos meios de representação, ao dar importância maior aos problemas formais, de tal modo que estes somente poderiam ser resolvidos pelos arquitetos com o emprego de seu novo instrumental.[2]

As conseqüências e conflitos desse deslocamento da profissão até hoje se fazem sentir quando as soluções formais dos arquitetos deslocados do canteiro precisam ser construídas com integridade de modo a resistir às intempéries e à passagem do tempo. A cisão entre o canteiro e o desenho é problema antigo discutido repetida e exaustivamente a cada geração desde aqueles tempos. Entricheiram-se, de um lado, os arquitetos que vivem de textos, palestras e publicações em revistas, e de outro lado aqueles que vivem de produzir desenhos destinados à construção. Os argumentos de cada parte são repetitivos e talvez não valha a pena aqui mencioná-los senão em seus mais conhecidos pares dialéticos: teoria versus prática, “arquitetura do espetáculo” versus “arquitetura comum”, artistas versus pedreiros, estrelas versus operários etc. Já lembramos recentemente[3] que, enquanto primeiro grupo goza de maior prestígio social, o segundo grupo projeta e constrói mais. Fosse a convivência entre estes grupos pacífica, e talvez nossas cidades houvessem sido construídas pelos arquitetos e urbanistas. A realidade, entretanto, é bastante distinta. Enquanto mestres de obras e técnicos em edificações efetivamente materializam nossas metrópoles – que se expandem via de regra pelos bairros de classe média-baixa e baixa – os arquitetos digladiam-se pela primazia da execução de poucos monumentos, edifícios públicos, moradias e escritórios das classes mais altas – e vez por outra ou conjuntos habitacionais assistencialistas.

Essa inserção social e esse campo de atuação restritos descendem claramente daqueles construídos pelos arquitetos renascentistas – e do que se convencionou chamar de arquitetura a partir de então, em oposição à mera construção[4]. Ocorre que, com a expansão das classes médias e a proliferação de arquitetos nesses extratos sociais intermediários, o número de profissionais excluídos é crescente. E mesmo os excluídos não se ocupam de tratar com competência dos seus problemas mais próximos: os edifícios das periferias (os responsáveis por mais de 70% da mancha urbana de nossas metrópoles). O motivo é muito simples: não foram preparados para fazê-lo. Aprenderam nas faculdades – e lêem nas revistas e livros de arquitetura – soluções para problemas que, ou não existem efetivamente, ou não lhes dizem respeito. Do mesmo modo, voltando aos dois grupos antagônicos, as estrelas costumam esbanjar uma despreocupação olímpica com a construção, uso e manutenção de seus edifícios, enquanto os técnicos pavoneiam-se ingenuamente de sua ignorância total sobre qualquer questão humanística que vá além do carisma de que usam para convencer seus clientes.

A história nos ensina que estes grupos não se reconciliarão. Preferimos, por isso, uma via alternativa, que teorize sobre os aspectos práticos e que cobre relevância social direta das problematizações teóricas. Se o arquiteto de escritório trata de desenhos técnicos e de técnicas construtivas, sobre eles também nos devemos debruçar em busca de constantes, princípios, valores e métodos passíveis de sistematização – em busca da própria teoria – e transmissão para as gerações futuras. Na mão inversa, se o arquiteto de revista trata de publicações, de livros, palestras e exposições, que elas digam respeito ao menos a soluções efetivas para os problemas de seu tempo, e não de frívolas questões endógenas.

a competência do arquiteto

Em nossa sociedade, arquitetos que projetam – e não possuem empreiteiras – extraem seu sustento da entrega de desenhos. Mesmo que acompanhados por maquetes e textos, são os desenhos o cerne da documentação comercializada. Nesse sentido, o desenho é uma mercadoria como outra qualquer: possui seu valor intrínseco e seu valor como índice de uma obra que será construída. Mesmo que acompanhados pela carga simbólica conotada pela griffe do autor – evidentemente parte do produto em questão –, são os desenhos que conectam criador e obra construída. Comprovam estes argumentos os croquis , os riscos originais que todos fazem questão de publicar junto aos projetos.

Existem definições claras sobre a natureza dos desenhos arquitetônicos. Segundo a Norma Brasileira, o projeto de arquitetura é elaborado nas seguintes etapas: levantamento de dados, programa de necessidades, estudo de viabilidade, estudo preliminar, anteprojeto (ou de pré-execução), projeto legal, projeto básico (opcional, voltado para órgãos públicos), e projeto para execução [ou Projeto Executivo] de arquitetura.[5] Este último é definido como etapa destinada à concepção e à representação final das informações técnicas da edificação e de seus elementos, instalações e componentes, completas, definitivas e necessárias à licitação (contratação) e à execução dos serviços de obra correspondentes.[6] A Tabela de Honorários do Instituto dos Arquitetos do Brasil[7] foi feita a partir dessas etapas. Enquanto se atribui um valor de 10% a 15% ao Estudo Preliminar, o Projeto Executivo corresponde a 50% da remuneração. Voltaremos a esta relação proporcional em seguida.

A responsabilidade do projetista sobre a obra construída é tanto maior quanto maior for a correspondência entre seus desenhos e a edificação concreta. Na prática atual, entretanto, esta constatação opõe-se ao senso comum corporativo corrente entre nós de que o arquiteto é dirigente da edificação. Assim o seria se sobre ela tivéssemos responsabilidade total – o que não é o caso em nosso país. A obra construída é produto coletivo de todos os projetistas e de responsabilidade principalmente do construtor, e nesse grupo o arquiteto comumente assume apenas o peso do papel secundário que lhe cabe (vegetal, manteiga ou sulfite).

Indo mais além na argumentação, em nosso país não temos notícia de acionamento legal de algum arquiteto ou escritório de arquitetura devido a erros de projeto. Normalmente, a culpa por problemas em edificações recai sobre os empreiteiros e engenheiros projetistas, devido a problemas construtivos e a falhas nas instalações. No Brasil, o arquiteto – o mesmo a encabeçar a ficha técnica em revistas, relegando aos demais os papeis de coadjuvantes – não é responsabilizado por praticamente nada. Convido o leitor a vasculhar sua memória e a encontrar exemplos recentes de arquitetos considerados publicamente responsáveis por desabamentos, patologias estruturais e mesmo por acidentes de trabalho e enfermidades em moradores de seus edifícios. Verá que não se ouviu falar dos arquitetos. Os engenheiros em alguns casos foram presos ou execrados publicamente, porque deles efetivamente era a responsabilidade pelas decisões críticas.

Não nos enganemos atribuindo ao arquiteto contemporâneo uma competência que na prática não lhe cabe: o produto concreto imediato de seu trabalho são os desenhos, que são valorados por sua qualidade comunicativa e pelo que resulta dela – a obra construída entendida em seu sentido meramente plástico. O desenvolvimento e detalhamento construtivo relevante de um projeto, para além das aparências portanto, implica em assumir mais responsabilidades. Ao assumir plenamente o encargo do projeto executivo, do detalhamento e da integração e compatibilização de projetos complementares, o arquiteto amplia consideravelmente o seu crédito efetivo pela obra construída – e consequentemente seu campo potencial de atuação. Saber desenvolver e representar um projeto para execução deságua assim em mais competências profissionais.

Feita esta constatação, torna-se desconcertante o descaso do métier da arquitetura e engenharia brasileiras para com as convenções de desenhos. As normas são escassas[8], as disciplinas universitárias de desenho técnico são consideradas instrumentais (ou não finalísticas) e chega a ser um milagre que alguma comunicação efetivamente ocorra por meio de uma linguagem tão carente de gramática. Tanto nas engenharias quanto na arquitetura, a disciplina de desenho técnico foi reduzida a um reles semestre letivo, e o desenho técnico tem seu aprendizado nos estágios de escritório e marginalmente nas disciplinas de projeto.

As disciplinas de projeto e as demais disciplinas dos cursos universitários parecem tratar de tudo, menos do desenvolvimento de projetos nas sucessivas etapas necessárias à execução da obra. A prática dos escritórios de arquitetura é quase que integralmente composta pelo desenvolvimento de projetos de aprovação, de projetos executivos, de detalhamentos e de desenhos adicionais necessários à execução. Na verdade, vemos que a proporção valorativa sugerida pela Tabela de Honorários do IAB certamente sobrevalorizou as fases iniciais do projeto devido à carga simbólica da criação artística. A prática mostra que a relação estritamente quantitativa reduziria significativamente o valor daquelas. Um estudo preliminar desenvolvido em duas semanas tem seu desenvolvimento e obra arrastados por anos a fio, mas não se aprende sobre como lidar com isso nas universidades e pouco se discute sobre esta prática em nossas revistas e livros de teoria e história. Como observou John Summerson,

Ele [o arquiteto moderno], por diversos motivos, saiu de seu papel, deu uma olhada na cena ao seu redor e tornou-se obcecado não com a importância da arquitetura, mas com a relação da arquitetura com outras coisas. Isso é exatamente o que ocorreu.O arquiteto saiu de si mesmo, como se fosse uma segunda pessoa a sair da primeira num filme psicológico. Ele (prosseguindo momentaneamente com esta metáfora) deixou sua primeira personalidade na prancheta e assumiu a segunda (a personalidade ‘viva’) numa volta ao mundo contemporâneo – pesquisa científica, sociologia, psicologia, engenharia, as artes e diversas outras coisas.  Ao retornar à prancheta, sua primeira personalidade lhe parece constrangedora e extremamente desinteressante. Ali está ele desajeitadamente sentado, recendendo levemente a “estilos”. Então a segunda personalidade senta-se ao lado dele e dolorosamente guia sua mão.[9]

Por bizarro que possa parecer, esta espécie de dupla personalidade do arquiteto não é exceção. Comprova isso o descompasso entre o que consta em nossa historiografia e o que de fato correspondeu à prática edilícia das sociedades ali descritas. Em alguns momentos, o ethos de uma personalidade invade os domínios da outra. É então que o arquiteto imbuído da cobrança social pela invenção – no sentido lato – torna-se incapaz de obedecer às mais simples convenções.[10]

o desenho arquitetônico, suas convenções e detalhes

Ocorre que, no Brasil, cada escritório de arquitetura inventa suas próprias convenções gráficas.  Aqueles encarregados de construir as obras devem aprender a ler o idioma de cada escritório, transformando-se em verdadeiros poliglotas iconográficos. De fato, se engenheiros civis, mestres-de-obras, serralheiros e marceneiros[11] acabam por aprender algo desse código na prática, o fazem de tanto sentirem no bolso as conseqüências de seus erros de interpretação. E se não aprendem a ler os desenhos, aprendem a conversar sobre eles minuciosamente com o arquiteto na obra.

Nessa babel, os arquitetos também padecem, já que dependem de engenheiros para desenvolver os projetos complementares. Os engenheiros – sobretudo os ligados às instalações – embora sejam bastante mais afeitos a seguir convenções de símbolos e metodologias de representação, tendem a tratar o desenho técnico mais como diagrama simbólico que como desenho figurativo. Dessa falta de compreensão das características físicas e dimensões da coisa tratada nascem os problemas de compatibilização – cuja solução ou bem fica a cargo do arquiteto ou bem fica a cargo do empreiteiro – onde tubos descem aparentes fachada abaixo, máquinas não cabem nos vãos destinados a elas, equipamentos ficam sem visita para manutenção etc.  A situação agravou-se ainda mais com o advento dos sistemas de CAD – Computer Aided Design. No computador, a representação digital possui múltiplas possibilidades de elaboração, que resultam aparentemente num mesmo desenho impresso. O intercâmbio de arquivos entre engenheiros e arquitetos dentro desse universo infindável de variáveis é praticamente impossível sem uma padronização estrita do modo de trabalho. Evidentemente, a maior parte dos escritórios brasileiros de engenharia  e arquitetura ignora ou despreza olimpicamente os poucos padrões existentes.[12]

Mais uma vez, a origem dessas mazelas está na carência de conhecimento sistematizado sobre o tema em nosso país. Os arquitetos aprendem a desenhar estudos preliminares na faculdade e passam a vida folheando e estudando revistas e livros com plantas na escala de 1:500, e dali extraindo seus parâmetros de trabalho. Mesmo as revistas técnicas – como a brasileira Techné, a alemã Detail ou a espanhola Tectónica – limitam-se a exibir diretamente os detalhes da escala 1:1, passando ao largo das plantas, cortes e fachadas do projeto executivo, por uma simples impossibilidade material de publicar uma revista em formato A0. Estes desenhos gerais, os mais importantes de todo o projeto, onde todos os detalhes, eixos, especificações e dimensões estão indicados e mapeados, simplesmente não são publicados em tamanho legível. Enquanto isso, esquadrias e grampos de fixação de granito são reproduzidos ad nauseam.

À esquerda, detalhe do catálogo da Alcoa para pano de vidro. À direita, detalhe publicado no especial 'Detalles' da revista argentina Summa (dez.2004)

Nesse ponto, o problema ganha nova complexidade, pois esbarramos no conflito entre a prática arquitetônica estrangeira e a brasileira. A representação do detalhe ampliado de vedação tem sua origem nas wall-sections norte-americanas – desenhos autônomos que convencionalmente sintetizam o desempenho da vedação do edifício. São parte das convenções gráficas que os arquitetos são obrigados a dominar para obter seu diploma na maioria dos países europeus e nos Estados Unidos. Se nesses países as normas existem e são cumpridas, no Brasil as normas rareiam e são ignoradas. Lemos os desenhos nas revistas estrangeiras e copiamos os seus cacoetes e seus detalhes – as wall-sections que não fazem sentido algum em alvenaria de tijolos, no que muitas vezes se torna um tecnicismo inútil e um detalhismo perfeitamente dispensável. Um exemplo clássico desse tipo de prática corrente entre nós é a insistência que se tem em publicar os detalhes de caixilharia de alumínio, quando é sabido que as montagens desses perfis extrudados de grande complexidade é inteiramente determinada pelas linhas criadas pela indústria. Escolhido o modelo da esquadria, trata-se simplesmente de uma montagem de detalhes padronizados sobre os quais o arquiteto e o engenheiro têm pouca ou nenhuma influência.

A causa para este tipo de vício, mais uma vez, tem suas origens na própria afirmação da autonomia do campo arquitetônico. Como bem nos lembra Sérgio Ferro: a coisificação desta verborragia analítica não pedida só é explicável (…) pela urgência de iludir o próprio esvaziamento.[13] Além dos detalhes inúteis, incluem-se na crítica de Sérgio Ferro também os detalhamentos superabundantes. Nesse campo, de identificação mais dificultosa, incluem-se sobretudo os defensores da industrialização na construção – que de tanto buscar novos padrões acabam simplesmente por inventar todo um novo sistema semi-industrial a cada projeto. Nesse vício incorrem muitos dos que são admirados pelo domínio da técnica construtiva: inventam detalhes complexos, supostamente indicativos de alta tecnologia, que serão de execução difícil, dispendiosa e de desempenho duvidoso. Um bom exemplo é o que Peter Blake chamou, há mais de trinta anos, de celebração da junta:

(…) em certos tipos de construção com painéis ou outros tipos de pré-fabricação, a junta entre as partes – aquela infinitamente problemática e infinitamente multiplicada junta, a causa de vazamentos, empenamentos, corrosão, desbotamento, de muita confusão, preocupação e trabalho – essa junta insignificante simplesmente não era recoberta e ocultada da melhor maneira possível; ela era intrincadamente articulada, interminavelmente expressada, voluptuosamente discutida pelos críticos e masoquisticamente celebrada. [14]

da prática à teoria do desenho

É desejável, portanto, que nos debrucemos mais detidamente sobre os desenhos e especificações que resultam nas obras construídas que admiramos, de modo a lhes conhecer os pormenores que tornaram possíveis a comunicação com os executores e sua feitura a contento. Se nosso produto de trabalho é o desenho, é natural e desejável que nos detenhamos com mais vagar na reflexão acerca do que nos consome mais tempo e esforço – o Projeto Executivo e a obra – que nos valores artísticos emanados dos Desenhos de Apresentação constantes nos estudos preliminares feitos em uma semana. É natural que desejemos desenvolver uma espécie de “Teoria do Projeto Executivo”, ou “Teoria do Desenho”.

É nesta documentação, em sua clareza, em sua capacidade de comunicação e síntese de idéias, que está um dos fatores indicativos de um bom projeto de arquitetura – e frequentemente de uma boa obra executada. Se a construção, por suas avantajadas dimensões, forçosamente é composta por vários elementos e componentes, é no modo como ordenamos esta composição e conciliamos as partes e materiais que está o cerne de nosso labor. É no desenvolvimento de cada parede, de cada janela, onde os valores fundadores do projeto são testados e reavaliados, e as partes questionam de volta o autor sobre a pertinência do todo. É nessa retórica do jogo construtivo que se determina a medida de coesão e integridade de uma obra, e consequentemente sua durabilidade – preocupação premente em tempos de escassez de recursos não-renováveis.

Para ser levado à execução, um projeto passa por uma ampliação de escala, pela divisão do todo em partes sucessivamente menores, representadas em elevações, seções e perspectivas devidamente especificadas. Se este conjunto de desenhos é coeso em sua ordenação e homogêneo em sua representação, sua compreensão é enormemente facilitada. Ao representar plantas, cortes e fachadas do conjunto da edificação, o arquiteto escolhe os elementos e componentes cujo custo, complexidade ou importância para o conjunto requerem desenho ampliado. A partir dessa escolha inicial, o detalhamento é agrupado normalmente em sua ordem de execução e importância, em pequenos conjuntos autônomos que podem ser enviados a sub-empreiteiros. Esta aparente autonomia do detalhe exige um estrito controle do autor de modo a harmonizar os próprios elementos entre si, mantendo a unidade do conjunto e a coesão dos conceitos desenvolvidos.

Quando se desenvolve um projeto plenamente e se acompanha sua execução, cai por terra o mito do projeto ideal surgido platonicamente na cabeça do arquiteto a priori, do qual a matéria seria apenas um pálido reflexo. É ali, na lida com as coisas concretas, suas vontades, suas afinidades e limitações, que surgem as invenções duradouras.  Dentro desta visão, o conceito original do edifício, normalmente entendido como uma declaração inicial de intenções por seu autor, converte-se em objeto de diálogo com a realidade mediado pelo desenho, conforme nos explica Carlos A. Leite Brandão, para quem

nem o conceito é da pura ordem da subjetividade e da teoria, nem o projeto e a obra são da pura ordem da objetividade e da prática empírica. O conceito se faz na própria representação e na própria construção. E para o crítico interessa compreender os conceitos nessa fala do projeto, e não na idéia original do autor, a qual creio sempre permanecer inacessível, inclusive ao próprio autor. O conceito está na obra e no projeto, e não na subjetividade do arquiteto. Ele mora no desenho, na maquete ou na imagem virtual – e não no pensamento do autor ou no contexto sócio econômico – e é lá, em primeiro lugar, que ele deve ser perseguido pelo crítico ou intérprete. Essa representação, portanto, não é a mera perseguição de uma idéia que sempre insiste em fugir, mas um dos momentos em que o próprio conceito se formula[15]

O desenho de execução, portanto, vai além da apresentação de uma idéia. Ele é sua representação, e como tal estabelece uma relação dialética e dinâmica com ela.

A tecnologia digital rompeu a barreira imposta originalmente pelo meio do livro impresso. Hoje, pode-se publicar arquivos de pranchas inteiras de desenho no mesmo espaço em que antes se apresentava um texto e alguns diagramas. Com essa nova possibilidade, um novo campo de valoração da obra publicada vem à tona. É possível testemunhar o modo pelo qual o arquiteto comunicou-se com os executores, é possível aferir o grau de realização das intenções originais, é possível aprender com os erros e triunfos dos colegas, trazendo à tona um campo de conhecimento tão vital e tão esquecido pela cultura de nosso campo. Num momento futuro, talvez alguma tecnologia de CAD/CAM substitua o velho desenho técnico, mas esta é uma outra discussão…


notas

[1] Renaissance treatises define architectural “orders” (columns, capitals, lintels, etc.) that are singularly lacking in material weight. What are they made out of? Wood, marble, stone, brick, stucco? How are they made? By whom? With what instruments? At what price? The books don’t tell us. Carpo, Architecture in the Age of Printing, 7.

[2] Martínez, Ensaio sobre o projeto, 15.

[3] Macedo, “Deixar de pensar no estilo.”

[4] A passagem de Sylvia Ficher explica a conotação desta expressão, tão recorrente na teoria da arquitetura: “Quando nós falamos em arquitetura clássica, somos nós que falamos em arquitetura clássica, que adjetivamos o termo arquitetura. Até meados do século XVIII, quando se dizia arquitetura – obviamente estou me referindo ao contexto ocidental, europeu – não era preciso adjetivar: arquitetura queria dizer arquitetura clássica, caso não fosse clássica, não era arquitetura. E não apenas quando se tratava de edifícios de exceção. Se uma edificação não é clássica, não é arquitetura: é uma construção. É por essa razão que ainda se fala uma bobagem dessas: “mera construção“… […] O caso brasileiro é extremo. Ou seja, mais ainda do que nos Estados Unidos ou na Europa, aqui, naquele momento – no nosso caso, da década de quarenta em diante – Arquitetura é Arquitetura Moderna. Se não é Arquitetura Moderna, não é Arquitetura, tout court, não é entendida pelos arquitetos como Arquitetura: é construção […]” in Ficher, “Reflexões sobre o pós-modernismo,” 5.

[5] Associação Brasileira de Normas Técnicas, NBR 13532/1995, 3.

[6] Associação Brasileira de Normas Técnicas, NBR 13531/1995, 2.

[7] Instituto de Arquitetos do Brasil, Tabela de Honorários.

[8] Atualmente, a única norma da ABNT específica de desenho arquitetônico é a NBR 6492/1994 – Representação de projetos de arquitetura.

[9] He has, for some reason or another, stepped out of his ‘rôle’, taken a look at the scene around him and then become obsessed with the importance not of architectures, but of the relation of architecture to other things. This is exactly what happened. The architect has walked out of himself, rather like a second personality is seen to walk out of the first in a psycological film. He has (to pursue this metaphor for a moment), left the first personality at the drawing board and taken the second (the ‘live’ personality) on a world-tour of contemporary life – scientific research, sociology, psychology, engineering, the arts and a great manu other things. Returning to the drawing-board he finds the fist personality embarrassing and profoundly unattractive. There he stubbornly sits, smelling slightly of ‘the styles’. So the second personality sits down beside him and painfully guides his hand. In Summerson, “The mischievous analogy,” 197.

[10] A seguinte anedota ilustra bem o lamentável quadro de confusão mental de alguns de nossos colegas nesse sentido. Certa vez, participando de uma banca de um Trabalho Final de Graduação em arquitetura, advertimos que o aluno não havia dotado um edifício de seis pavimentos de escadas protegidas contra incêndio, em desacordo com as normas vigentes. Seu orientador saiu em sua defesa, afirmando: “as regras estão aí para serem quebradas”.

[11] Convém lembrar que, ao contrário dos engenheiros, a maioria – senão a totalidade – dos operários da construção civil carece de instrução formal no que concerne à elaboração e interpretação de desenhos técnicos, suas convenções e suas técnicas.

[12] Cf. Associação Brasileira de Escritórios de Arquitetura – AsBEA. Diretrizes gerais para intercambialidade de projetos em CAD: integração entre projetistas, construtoras e clientes. Organizado por Henrique Cambiaghi, São Paulo: Pini, 2002.  199p.

[13] Ferro, “Arquitetura nova,” 55.

[14] (…) in certain kinds of panelized or otherwise prefabricated buildings, the joint between parts – that endlessly troublesome and endlessly multiplied joint, the source of leaks, of buckling, of corrosion, of discoloration, of much fuss and bother and expense – this miserable joint was not merely not covered up and done away with as best as possible; it was intricately articulated, interminably expressed, volubly discussed by the critics, and masochistically celebrated. In Blake, Form Follows Fiasco, 61.

[15] Brandão, “Linguagem e arquitetura: o problema do conceito.”


referências bibliográficas

Associação Brasileira de Normas Técnicas. NBR 13531 : Elaboração de projetos de edificações – atividades técnicas. Rio de Janeiro, 1995.

———. NBR 13532 : Elaboração de projetos de edificações – Arquitetura. Rio de Janeiro, 1995.

Blake, Peter. Form follows fiasco: why Modern Architecture hasn’t worked. Boston / Toronto: Little, Brown, 1977.

Brandão, Carlos Antônio Leite. “Linguagem e arquitetura: o problema do conceito.” Interpretar Arquitetura, Novembro 2000. .

Carpo, Mario. Architecture in the age of printing: orality, writing, typography, and printed images in the history of architectural theory. Traduzido por Sarah Benson. Cambridge, Mass: MIT Press, 2001.

Ferro, Sérgio. “Arquitetura nova.” In Arquitetura e trabalho livre, 47-58. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

Ficher, Sylvia. “Reflexões sobre o pós-modernismo.” MDC – Revista de Arquitetura e Urbanismo, Março 9, 2007.

Instituto de Arquitetos do Brasil. Tabela de Honorários : condições de contratação e remuneração do Projeto de Arquitetura da edificação. .

Macedo, Danilo Matoso. “Deixar de pensar no estilo.” MDC – Revista de Arquitetura e Urbanismo, Janeiro 19, 2009. //28ers.com/2009/01/19/deixar-de-pensar-no-estilo/.

Martínez, Alfonso Corona. Ensaio sobre o projeto. Traduzido por Ane Lise Spaltemberg. Arquitetura e Urbanismo. Brasília: Unb, 2000.

Summerson, John. “The mischievous analogy.” In Heavenly mansions and other essays on architecture, 195-218. New York/London: W. W. Norton, 1963.


danilo matoso macedo
Arquiteto e Urbanista (UFMG, 1997), Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 2002), Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ENAP, 2004), editor da revista mdc.

contato: correio@danilo.28ers.com |

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4 respostas para Sobre projetos executivos e detalhes

  1. disse:

    Danilo, parabéns pela iniciativa sem igual, até onde eu saiba, na crítica de arquitetura brasileira atual. E, como sempre, ótimo artigo.

  2. Andre L. Moreira disse:

    Parabéns pelo artigo.
    Eu que ainda sou estudante e sou de uma familia que constantemente muda-se de cidade pudo percerber na prática e ter parametros de comparação sobre o ensino de desenho nas universidades brasileiras; Uma em especial era muito forte e voltada ao desenho…
    Mas com o tempo vamos percebendo que tudo é um refexo da desorganização da profissão e da casa a qual ela está vinculada.

  3. Pedro disse:

    Danilo,
    Caso o trabalho que você cita sua participação na banca tenha sido o meu (2006), gostaria de afirmar que a versão “anedota” [ver nota 10] no seu texto está bastante distante da discussão que, de fato, ocorreu. Nesse sentido, os dados apresentados, as falas citadas e, mesmo, as omissões do contexto do projeto, estariam apenas servindo para reforçar o argumento de seu artigo…(em detrimento do ocorrido).
    No mais, parabéns pelo texto.

  4. Gabriela disse:

    Gostaria de parabenizar pela iniciativa. Acho que a questão é de grande importância, já que percebi que muitas faculdades de arquitetura, pelo menos as que tenho conhecimento, não aprofundam em nada a questão do detalhamento. O aluno fica sujeito a aprender tudo isso em escritórios e quem não tem a oportunidade de estagiar ou trabalhar em grandes escritórios perde muita coisa que é fundamental para que bons profissionais sejam formados. Obrigada!

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