Sobre o projeto da Praça da Soberania, de Oscar Niemeyer.
Eduardo Pierrotti Rossetti
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“…provisoriamente”. Assim, com a indicação desta possibilidade latente é que o Arquiteto Oscar Niemeyer encerrou sua participação direta nos embates acerca de seu projeto para a “Praça da Soberania” na Esplanada dos Ministérios, em Brasília.
Somente os mais incautos poderiam supor que o maior arquiteto atuante no campo brasileiro fosse deixar a última palavra sobre seu projeto com a imprensa, com “a população”, com outros arquitetos ou mesmo com pesquisadores e estudiosos da arquitetura —os “especialistas”! Enquanto acatava “provisoriamente” o veredicto sobre sua proposição para uma intervenção no vazio soberano da Esplanada dos Ministérios, Oscar Niemeyer retomava o problema para redefinir uma nova solução para a “Praça da Soberania”. A nova versão para esta Praça tornou-se pública em 27 de maio, quando da abertura da exposição “Oscar Niemeyer 1999-2009” e do lançamento do quarto número da revista Nosso Caminho, que traz em sua capa a primeira versão da Praça da Soberania. Essa nova versão foi divulgada dois dias depois pelo jornal Correio Braziliense, justamente no dia em que o Arquiteto proferiu uma aula aos estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília.
Neste novo projeto para a Praça da Soberania, Oscar Niemeyer apresenta uma solução que claramente indica a consideração de alguns aspectos que foram bastante criticados naquele primeiro projeto, para além da questão do tombamento e da possibilidade legal de construir a Praça —questão para a qual o IPHAN tem toda competência e legitimidade para decidir. O novo projeto de Oscar Niemeyer, descrito como sendo “Uma modificação irrecusável”[1] propõe uma alteração significativa na dimensão e na implantação do obelisco (ou monumento), deslocando-o do eixo da Esplanada onde se situava originalmente, reduzindo sua altura pela metade, passando a ter 50m.[2] Além disso, o Memorial dos Presidentes passou a ser implantado paralelamente às vias do Eixo Monumental, aproximando-se da Via S1. Este Memorial tornou-se um bloco retilíneo, dialogando formalmente com um novo edifício de implantação equivalente com uso indicado de “museu/exposições”. Tudo agenciado sobre uma superfície graficamente homogênea, provavelmente seca, sem fatores indicativos sobre o caráter construtivo e matérico, sem maiores informações sobre a implantação e suas conexões com os setores culturais Norte e Sul, ou suas conexões com a Plataforma Rodoviária. Sem essas e outras precisões, pretender abordar a nova versão do projeto da Praça, torna-se apenas uma oportunidade especulativa.
Nesta versão atual do projeto, o arquiteto reconhece a importância fundamental da visibilidade do conjunto arquitetônico monumental projetado por ele mesmo a partir do risco de Lucio Costa e apreendido desde a Plataforma Rodoviária —cuja autoria é de Lucio Costa. Assim, muito mais do que um mero ajuste entre os edifícios da nova versão da Praça, é sintomática a manutenção deste diálogo atemporal com Lucio Costa evidenciado na argumentação de Niemeyer sobre a nova solução: “…senti que, sem querer, tinha atendido ao desejo de se manter uma visibilidade total da Rodoviária até a Praça dos Três Poderes.”[3] Trata-se de uma alteração projetual muito significativa, que evidencia também que Oscar Niemeyer reviu seu entendimento de que a Plataforma da Rodoviária seria apenas um mero cruzamento de viadutos, conquanto se configura de fato como lugar articulador da vida urbana.[4]
A segunda versão da Praça da Soberania deve ser compreendida mais como uma resposta de Oscar Niemeyer ao campo da arquitetura —incluindo aí também os “especialistas”— do que uma indicação de sua efetiva vontade de construí-la. A edição dominical do Correio Braziliense já revelou a posição oficial do Governo do Distrito Federal de que o “projeto não sairá do papel”.[5] Assim, a nova versão da Praça parece ter uma existência com inicio, meio e fim já anunciados, sem pretender causar maiores debates ou sem pretender suscitar efetivas polêmicas. Ao que parece, ao mesmo tempo em que Oscar Niemeyer entende que não poderia deixar a terceiros a última palavra sobre o seu projeto, ele quer demonstrar que ainda está apto para assimilar críticas e re-estabelecer um diálogo profícuo com seu próprio campo, como uma de suas respostas à entrevista do Correio Braziliense indica. Indagado se foi um gesto de humildade modificar o projeto, ele responde: “Lógico. Fiz o que é justo, correto…”[6] Menos do que um recuo, trata-se de um indício da capacidade do longevo arquiteto de rever suas próprias posições perante as diversas circunstâncias, como historicamente já fizera antes, no final dos anos 50, quando da publicação de “Depoimento”.[7]
Trata-se também de uma reação muito diferente do polêmico enfrentamento que ele travou com o projeto do novo auditório para o Parque do Ibirapuera em São Paulo, quando tentou efetuar uma alteração em sua marquise. Em meados dos anos 90, quando proferiu uma aula magna na FAU-USP, Oscar Niemeyer encerrou seu discurso com a última obra que pautava o debate corrente no campo, demarcando sua vivaz presença. Naquela ocasião, o Museu de Arte Contemporânea de Niterói foi a obra que arrematava sua trajetória, fato equivalente com o que ocorreu no dia 29 de maio, quando ele encerrou mais uma exposição sobre sua própria trajetória perante alunos, familiares, imprensa e autoridades, mostrando a segunda versão para a Praça da Soberania. Qual será a próxima obra ou o próximo grande projeto a integrar essa trajetória? Isto é impossível saber, mas ao que tudo indica, enquanto ele, Oscar Niemeyer, estiver projetando e vislumbrando suas novas arquiteturas, fato seguro é que permanecerá distante da unanimidade.
A produção recente do arquiteto nos últimos dez, quinze anos demonstra que Oscar Niemeyer permanece envolvido com demandas e programas complexos, tais como: universidades, centros administrativos ou complexos culturais de múltiplo uso, museus… São em grande parte projetos que correspondem a um “tema mais forte” segundo ele, exigindo arquiteturas de caráter representativo, cívico ou com uma abrangência urbana de caráter e escala monumental. Para resolver tais edifícios, Niemeyer assinala a permanência de suas estratégias projetuais, especulando, depurando, reforçando e ampliando o seu reconhecido repertório formal. Além das superfícies preponderantemente secas que idealmente embasam as obras, muitas cúpulas, blocos ou edifícios pavilhonares, marquises e rampas predominam nesta produção, sendo articulados e agenciados para resolver mais a plasticidade do conjunto que a diversa gama de programas que devem abrigar. Os croquis de Niemeyer, que antes enunciavam estrutura e forma a um só tempo, agora cederam lugar às imagens produzidas pela computação gráfica, que direta e figurativamente constroem a própria imagem do fato arquitetônico. Contudo, o concreto se mantém como o material inerente ao seu projetar. Sendo hoje preponderantemente branco, o concreto possibilita a Oscar Niemeyer definir as soluções formais, os vãos, os balanços e as dimensões que lhe são rotineiras: 50m, 200m, 300x300m, 150m de altura, etc.
Reiteradamente, a forma emerge como índice mais evidente e assumido de seu discurso, constituindo-se como uma chave de acesso específica para compreender a formulação de seu raciocínio construtivo, formal e simbólico. Oscar Niemeyer reforça a questão da forma como sendo a questão praticamente única e exclusiva da arquitetura. Sua fala de praxe defende que “arquitetura é invenção”,[8] e enfatiza que o controle sobre a forma é o problema projetual a ser enfrentado. Indiretamente, Niemeyer parece considerar secundárias as prementes circunstâncias do projetar para as quais concorrem as novas tecnologias construtivas, as legislações, os novos materiais, as demandas sos programas arquitetônicos contemporâneos, os suportes e linguagens de produção e representação do projeto, as questões urbanas, as questões ambientais, as especificidades sociais e as oportunidades políticas. Deste modo, seu discurso lança indagações sobre como produzir tecnologicamente, como explorar simbólica e plasticamente, como conceber as formas —novas e outras formas. Em meio às decisões excludentes e às subordinações que regem o ato de projetar —ou seja, elaborar a invenção arquitetônica— a forma continua a ser a questão fundamental que Oscar Niemeyer propõe e deixa a todo o campo, para além da crônica de uma praça anunciada, efetivamente.
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notas
[1] Trata-se do título do texto de apresentação que acompanha o projeto que está na exposição “Oscar Niemeyer 1999-2009” aberta no dia 28 de maio na Galeria Anna Maria Niemeyer, com visitação até 31 de julho. Note-se que este novo desenho e o texto não constam do livro homônimo, lançado nesta mesma ocasião.
[2] Deve ser notado que na proposição apresentada na exposição “Oscar Niemeyer 1999-2009” aberta no dia 27 de maio na Galeria Anna Maria Niemeyer, a última frase do texto que acompanha o projeto indica uma altura de 30m: “O monumento terá trinta metros de altura” (sic).
[3] Trata-se de uma frase que acompanha o desenho integrante da exposição “Oscar Niemeyer 1999-2009” aberta em 27/maio de 2009 na Galeria Anna Maria Niemeyer. Grifos adicionais.
[4] Sobre a Plataforma Rodoviária, adianto que há um artigo em elaboração sobre ela.
[5] Vide “Praça de Niemeyer sai dos planos”. Correio Braziliense, 31/maio/2009, p.31.
[6] Vide Correio Braziliense, 29/maio/2009, p.25.
[7] Vide Módulo nº.09, fev/1958. pp.03-06.
[8] Frase proferida por Niemeyer novamente em sua aula, no dia 29/maio/2009.
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referências bibliográficas
ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e Destino. São Paulo: Ática, 2001.
Correio Braziliense. Edições: 29/05/2009; 30/05/2009 e 31/05/2009;
NIEMEYER, Oscar. Quase memória: viagens, tempos de entusiasmo e revolta – 1961-66. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1968.
NIEMEYER, Oscar. Minha arquitetura: 1937-2004. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2004.
NIEMEYER, Oscar. Oscar Niemeyer – 1999-2009. Rio de Janeiro: &Letras, 2004.
ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Arquitetura em transe. Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi: nexos da arquitetura brasileira pós-Brasília (1960-85). São Paulo: FAU-USP, 2007. Tese de Doutorado.
STEVENS, Garry. O círculo privilegiado: fundamentos sociais da distinção arquitetônica. Brasília: EDUnB, 2003.
TAFURI, Manfredo. Teoria e história da Arquitectura. Lisboa: Editorial Presença. 1988.
TELLES, Sophia da Silva. Arquitetura Moderna no Brasil: o desenho da superfície. São Paulo: FFLCH- USP, Dissertação de Mestrado, 1988.
VALLE, Marco Antonio Alves do. Desenvolvimento da forma e procedimentos de projeto na arquitetura de Oscar Niemeyer (1935-1998). São Paulo/FAU-USP, Tese de Doutorado, 2000.
XAVIER, Alberto (Org.). Depoimento de uma geração. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
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Eduardo Pierrotti Rossetti
Arquiteto, doutor em arquitetura e urbanismo, pesquisador-pleno e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília
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