Latin America, for example,
still has no body of theory of its own to show.
Hanno-Walter Kruft, A history of architectural theory.
Como é o lugar
Quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas
Sem ser vistas?
(…)
Que fazem, que são
as coisas não testadas como coisas,
minerais não descobertos – e algum dia
o serão?
Carlos Drummond de Andrade, A suposta existência.
A série Panoramas da Arquitetura Brasileira, que a partir de agora publicamos na seção Ensaio e Pesquisa, tem origem no Simpósio Temático Panoramas da Arquitetura Brasileira Moderna e Contemporânea, organizado por Ruth Verde Zein no I ENANPARQ – Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, em 30 de novembro de 2010. Naquele evento, nove autores de panoramas apresentaram e discutiram suas obras, seus valores, seus processos de investigação e produção. A reunião tornou claro o impacto daquelas pesquisas na constituição da cultura arquitetônica contemporânea.
A historiografia da arquitetura do século 20 amadureceu um ritual de valoração de obras e autores para além de seu prestígio e reconhecimento locais. Com a expansão das revistas e das exposições, com seus catálogos, a consagração no próprio campo arquitetônico passou a independer do desempenho ou da popularidade das obras. Consolidaram-se assim as funções do crítico de arquitetura, do curador de exposições e do editor de revistas. Suas obras são possíveis portas de entrada de arquitetos e edifícios no panteão da história, e as narrativas desta são influentes elementos formativos das gerações de arquitetos do presente, num ciclo de reprodução de valores.
Do ponto de vista da organização formal, os produtos desse processo crítico e historiográfico poderiam ser divididos em:
a) coletâneas de textos, cuja reunião concertada alavanca uma visão narrativa implícita;
b) catálogos de obras, cuja seleção e reunião implicam uma visão crítica determinada;
c) narrativas panorâmicas, ou seja, esforços para propor explicitamente concatenações de fatos históricos, obras, autores e ideias;
A constituição desta série deve por isso ser tão plural e irrestrita quanto possível. Orientam-nos porém ao menos três objetivos bem determinados. Primeiramente, busca-se explicitar o próprio processo pelo qual as obras são selecionadas e incluídas numa determinada cultura arquitetônica, cujos valores tornam-se mais claros e passíveis de apreciação crítica. Em segundo lugar, compartilham-se as dificuldades, os dilemas e as limitações que a tarefa envolve, potencialmente servindo de estímulo e baliza para aqueles que hoje se dedicam a ela. Por fim, pretende-se tratar especificamente do campo de pesquisa que tem por objeto a própria história da arquitetura, e de sua teoria, em nosso país, cuja falta de divulgação sistemática tem levado a um relativo isolamento intelectual em relação ao meio internacional.
Sintomaticamente, por outro lado, alguns livros panorâmicos clássicos sobre nossa arquitetura são justamente aqueles que, de algum modo, tiveram algum tipo de fecundação estrangeira. Desde o catálogo elaborado por Philip Goodwin para a exposição Brazil Builds, realizada no Museu de Arte Moderna de Nova York em 1943, passando pelo Modern Architecture in Brazil, peça encomendada pelo Itamaraty a Henrique Mindlin para divulgação no exterior em 1956 – com introdução de Sigfried Giedion, até Arquitetura contemporânea no Brasil, escrito no final da década de 1960 pelo pesquisador francês Yves Bruand, – e só publicado, em português, em 1983.
Também no estudo de nossa arquitetura colonial, os textos canônicos são provenientes de estudos de estrangeiros, como L’architecture religieuse baroque au Brésil, de 1956, encomendado pelo IPHAN a Germain Bazin, curador do Louvre; os artigos de John Bury – compilados por Myriam A. Ribeiro em 1990; e a obra fundamental do norte-americano Robert Chester Smith, publicada na Revista do Patrimônio desde 1940, bem como em periódicos internacionais. Smith é responsável ainda pela introdução de um tipo de panorama ainda raro entre arquitetos brasileiros: a bibliografia comentada. É dele A guide to the art of Latin America, de 1948, e o capítulo sobre arte (e arquitetura) do Manual Bibliográfico de estudos brasileiros, organizado por William Berrien e Rubens Borba de Moraes no ano seguinte.
Se estes pesquisadores contaram com o apoio do Itamaraty e do IPHAN, do restrito grupo de intelectuais do patrimônio veio o conhecimento e parte da base empírica que lhes sustentou. São os trabalhos originais de Lucio Costa, Luis Saia, Joaquim Cardozo, Paulo Santos, seguidos por Sylvio de Vasconcellos e Carlos Lemos – hegemonia confirmada em autores como Edgar Graeff, Benjamin de Araújo Carvalho, Eduardo Mendes Guimarães ou João Boltshauser. Dentre suas obras panorâmicas destaca-se a influente síntese Quatro séculos de arquitetura, de Paulo Santos, escrita em 1965 e publicada como livro em 1977. Na mesma linha, Carlos Lemos publicava o também sintético Arquitetura Brasileira em 1979, cuja abordagem da arquitetura moderna viria a ser aprofundada no capítulo que lhe coube do abrangente História Geral da Arte no Brasil, organizado por Walter Zanini em 1983. Juntamente aos estrangeiros, esses autores estabeleceram alguns paradigmas conceituais que desde então vêm servindo de base para outros estudos e debates sobre a arquitetura brasileira.
Poucas visões destoavam então daquele uníssono, como a editoria da revista Habitat, conduzida por Lina Bo Bardi nas décadas de 1950 e 1960 – bastante crítica quanto à arquitetura carioca –, ou o Quadro da arquitetura no Brasil, publicado por Nestor Goulart Reis Filho em 1970, que partia de pressupostos analíticos urbanísticos, bastante distintos. A partir dos anos 1980, porém, a expansão da pesquisa e pós-graduação em arquitetura ampliou de maneira exponencial a quantidade e qualidade de estudos monográficos e setoriais sobre os mais variados temas, obras e arquitetos brasileiros.
Uma nova geração passa a propor as suas próprias leituras, revendo, ampliando e questionando as abordagens anteriores e já canônicas, divulgando-as inicialmente através de artigos pontuais, seja em publicações não acadêmicas (como a seção Ensaio & Pesquisa da revista Projeto ou a seção Documentos da revista AU), seja em publicações universitárias (como a revista Oculum da PUC-Campinas, entre outros). Paulatinamente esses estudos começam a ser publicados em livros cujas abordagens panorâmicas consolidam ou mesmo ultrapassam os paradigmas canônicos existentes. A partir do final dos anos 1990, essas publicações se consolidam, contando-se hoje com alguns panoramas mais amplos, temporal e geograficamente, sobre a arquitetura brasileira. Eles propõem novas abordagens visando uma compreensão de universos históricos mais extensos, complexos e não-lineares.
Esses trabalhos, abordando amplos períodos de tempo, atingindo ou não o momento contemporâneo, nascem de uma variedade de posturas conceituais: podem reforçar, revalidar e dar continuidade aos enfoques propostos pelos panoramas clássicos; podem contrapor-se ou alternar-se àquelas leituras; podem buscar estabelecer novos paradigmas e a abertura para outras possibilidades de interpretação. Em quaisquer casos, os esforços que vem sendo elaborados nesse sentido podem também ser entendidos como releituras da tradição da historiografia moderna brasileira, com vistas à compreensão crítica da nossa produção contemporânea.
Mas apesar desta produção recente, grande parte do ensino e da prática de arquitetura brasileiros segue empregando, nem sempre de maneira crítica, somente aqueles manuais anteriores à década de 1970. Sua leitura, embora útil e informativa, exuma pautas conceituais afinadas a momentos históricos passados. Quase sempre proclama de maneira linear, triunfal e frequentemente excludente, a autonomia, a consistência, a originalidade e a independência da modernidade arquitetônica brasileira, por exemplo.
Esse recurso aos clássicos é natural. Até mesmo pela dificuldade inerente a esse tipo de encargo, ainda há relativamente poucos estudos e pesquisas, realizados e publicados, tratando de nossa arquitetura de modo panorâmico, ou seja, abrangendo de maneira consistente e concertada períodos temporais ou geográficos amplos. Talvez o maior indicador dessa escassez seja a quase total ausência em nosso país de livros-texto abrangentes que deem conta com razoável profundidade de toda a história da arquitetura brasileira, desde a colônia até os dias de hoje.
Por isso, as narrativas de longo curso especificamente são um desafio conceitual importante. Sua produção é mesmo uma necessidade para aqueles que trabalham com a formação, o ensino e a pesquisa. Entretanto, não há seguramente uma maneira certa que determine como realizar tal tarefa; e assim pesquisas ou publicações tratando panoramicamente da arquitetura brasileira, abrangendo amplos períodos temporais e/ou geográficos, exige dos autores ou organizadores que definam com certa clareza os critérios de inclusão (e conseqüentemente, de exclusão) que adotam, os quais assumem de fato uma certa visão de mundo específica, que varia caso a caso.
Nem sempre porém a variedade de abordagens conceituais está clara e explicitamente indicada, e poucas vezes é facilmente perceptível aos leitores. Tal omissão frequentemente está ligada a uma certa compreensão vaga e difusa da mítica existência inconsútil de uma (e apenas uma) arquitetura para cada lugar e período, definida quase sempre de maneira excludente e linear. Esse hábito, nascido de uma visão ideologizada, no limite perpetua uma visão excludente da arquitetura contemporânea ao ser incapaz de compreender um panorama que já se complexificou exponencialmente. E talvez essa tarefa hoje sequer admita delimitações excessivamente rígidas de cunho regional ou nacional, tais como foram celebradas na primeira metade do século 20.
No caso brasileiro, esta abordagem unívoca está relacionada a uma certa confusão conceitual entre os temas de identidade nacional e os temas arquitetônicos, estes aparentemente apoiando e fomentando aqueles, num vínculo que é sempre reforçado embora talvez não seja nem necessário, nem indissolúvel, mas cuja presença constante ainda sombreia o campo. Ela impede ou dificulta abordagens multifacéticas – ou que priorizem outros paradigmas que não o da identidade nacional ou o do desenvolvimentismo – que acalentaram as primeiras visões panorâmicas da arquitetura moderna brasileira.
Com vistas a levantar estas questões, dentre outras, propõe-se, com a série Panoramas da Arquitetura Brasileira, o reconhecimento crítico de algumas das publicações de referência, debatendo as perspectivas delineadas pelos projetos, construções e pesquisas em andamento nesta primeira década do século 21. Inicialmente, a série contará com os aportes de Marlene Milan Acayaba e Sylvia Ficher, Hugo Segawa, Carlos Eduardo Comas, Roberto Montezuma, Renato Anelli, Abílio Guerra, Maria Alice Junqueira Bastos e Ruth Verde Zein. Pretende-se ainda expandir estas colaborações com outros autores igualmente fundamentais que não puderam tomar parte do simpósio temático do ENANPARQ devido a contingências circunstanciais. Espera-se com isso contribuir para uma compreensão ampla e diversa dos processos e discursos formativos de nossa visão historiográfica, abrindo novos caminhos dentro daquilo que se considera arquitetura, e possivelmente iluminando novos campos para o arquiteto – tanto o projetista quanto o pesquisador.
Ruth Verde Zein
Arquiteta, com mestrado (1999) e doutorado (2005) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pós-doutorado (2008) pela FAU-USP. Prêmio Capes 2006 de Teses. É professora e pesquisadora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É autora de, entre outros, Brasil: Arquiteturas após 1950 (com M. A. J. Bastos, Perspectiva, 2010), Sala São Paulo: A Arquitetura da Música (com A. R. Di Marco; Altermarket, 2007), Rosa Kliass: Desenhando Paisagens, Moldando uma Profissão (com R. Kliass, Senac, 2006) e O Lugar da Crítica: Ensaios Oportunos de Arquitetura (Ritter dos Reis/Proeditores, 2002).
Danilo Matoso Macedo
Arquiteto e Urbanista (UFMG, 1997), Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 2002), Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ENAP, 2004), editor da revista mdc.
Colaboração editorial: Débora Andrade
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