A nomeação de Guimarães como Capital Europeia da Cultura em 2012, foi pretexto para a realização de uma série de intervenções na cidade, entre as quais a renovação urbana de uma significativa área central, que este artigo apresenta. Realizado a convite da Câmara Municipal, a elaboração desse projecto originou a criação do Centro de Estudos da Escola de Arquitectura da Universidade do Minho (o qual formou e coordenou uma vasta equipa integrada, também, por elementos externos à Universidade), que entre 2009 e 2012 se lhe dedicou intensivamente.
Objecto de contínuo escrutínio por parte da população, dada a importância urbana da operação, o projecto foi apresentado e discutido publicamente em múltiplas ocasiões ao longo de todo o processo.
(re)Desenhar no coração da cidade
A Rua de Santo António, a Praça do Toural e a Alameda de São Dâmaso – conjunto ao qual se adossa o Convento de S. Francisco – constituem uma sequência de espaços em enfilade que acompanha a implantação da muralha medieval, conformando um importante segmento da área intersticial entre o Centro Histórico – Património Mundial da Humanidade desde 2001 – e as zonas que, ao correr dos séculos, se têm estabelecido extra-muros.
Colocando em evidência muitas das questões inerentes à intervenção em tecidos com valor patrimonial (em que memória e tradição são categorias frequentemente entendidas no sentido mais conservador e musealizante), o projecto pensou o espaço público na sua condição primeira, de ágora, lugar actualizado da manifestação cívica e da diversidade. Assim, o desenho, ancorando a proposta de transformação do espaço na sua longue durée (remonta ao século X a fundação do núcleo urbano), tentou favorecer novas e outras apropriações, articulando temas da urbanidade contemporânea e significados construídos pela memória colectiva.
Caracterizando a díspar circunstância urbana da zona a requalificar – uma rua de grande importância comercial, uma praça com enorme relevância urbana, uma extensa zona arborizada, a área fronteira a um edifício monacal de substancial valor arquitectónico e, ainda, as franjas envolventes -, encontramos, para além do conjunto em si próprio, elementos singulares notáveis de que destaca a muralha medieval (sendo apenas visível a Torre da Alfândega) a fachada ‘pombalina’ do Toural, a igreja de S. Pedro, o convento de S. Francisco e um significativo espólio vegetal.
O desenho de arquitectura, sempre profundamente relacionado com os projectos das especialidades, desenvolveu-se a par com o estudo de mobilidade rodoviária, o qual intentou reduzir o excesso de área então atribuída ao automóvel e qualificar o espaço de apoio ao transporte público, altamente deficitário à época. Assim, um grande rigor dimensional presidiu ao traçado, hierarquizando o sistema viário em função dos níveis de serviço pretendido e desencorajando o trânsito de atravessamento e o estacionamento diurno de prolongada duração. Redesenhando a estrutura viária e definindo perfis estritos, foi possível recuperar para o peão cerca de 40% da área anteriormente afecta ao tráfego motorizado e valorizar substancialmente o suporte físico destinado aos transportes colectivos.
Um outro pressuposto do projecto revela-se no estabelecimento das continuidades indispensáveis para que o sector renovado não viesse a surgir como um corpo estranho na cidade. Desejando-se antes uma solução que embora afirmando rupturas vincadas fosse, de alguma forma, natural ao sítio, pretendeu-se um desenho plácido, contemporâneo mas não datado, que integrasse e reutilizasse – reinterpretando, quando necessário – materiais, técnicas construtivas e mobiliário pré-existentes.
A Rua, a Praça, o Bosque e o Terreiro
A diversidade morfológica e funcional da área de intervenção tem a muralha, que a percorre em toda a extensão, como elemento comum e fundador. Expresso através de um curvo e vasto alinhamento de fachadas – que embora pertencentes a diversas épocas mantêm uma imagem e escala que unifica o conjunto – esta é uma fronteira que o projecto pretendeu assinalar, através da criação de um expressivo passeio que a acompanha, executado em granito da região. Relacionados e ligados física e materialmente através dessa marca longitudinal e a ela adossados, desenvolvem-se, em pendente transversal, a Rua, a Praça e o Bosque, ao qual se juntou um Terreiro.
O desenho da Rua de Santo António redefiniu o seu perfil, privilegiando a área destinada ao peão e dando legibilidade à Rua enquanto canal integrante do anel que envolve o centro intramuros.
À Praça do Toural – entendida como espaço desimpedido entre as fachadas que a moldam – pretendeu-se conferir inquestionável contemporaneidade e vincar aspectos relevantes da sua sedimentação histórica; nesse sentido, ao regresso do chafariz quinhentista ao local de origem associou-se um projecto de arte pública. Essa restituição – que incluiu a execução de um banco envolvente, entretanto desaparecido – redesenhou a geometria da praça, desmantelando uma equivocada centralidade instalada a partir de finais do século XIX, e atribuiu ao espaço uma tensão que o chafariz protagoniza em contraponto com um extenso varandim em ferro fundido, dourado. Ambas as peças se encontram assentes sobre uma calçada que, executada com o quartzo e basalto pré-existentes, representa a planta de um sector da cidade, uma imagem só reconhecível quando vista do alto – para quem o percorre o chão revela, apenas, uma composição gráfica abstracta.
Transformar a Alameda de São Dâmaso num Bosque significou atribuir-lhe um elevado nível de porosidade e adoptar uma organização informal do piso – topograficamente naturalizado e apenas recortado pelas caldeiras das árvores, antigas e recém-plantadas – e do mobiliário, reconfigurando, assim, o passeio público.
O projecto ambicionou, ainda, nobilitar a presença urbana do Convento de S. Francisco através da materialização de um Terreiro ex novo, um amplo e grave plano de suporte à eloquente retórica que o secular edifício exprime.
Integrar o palimpsesto urbano
Fundamentando o seu propósito de contemporaneidade em argumentos de ordem simbólica, de uso e espaciais, o desenho arquitectónico ensaiou, assim, introduzir novas possibilidades de apropriação do espaço público, ampliar o papel da natureza na cidade e encontrar espacialidades partilháveis por uma sociedade progressivamente híbrida e multicultural.
Comprometido com o reconhecimento crítico do lugar, o Projecto de Renovação Urbana da Praça do Toural, Alameda de S. Dâmaso e Rua de Santo António ambiciona, ainda, que a sua proposta transformadora – propósito último do projecto de arquitectura – se afirme como um novo passo na contínua fábrica da memória colectiva da cidade.
[CE.EAUM, Julho de 2012]
[texto fornecido pelos autores do projeto]
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Local: Alameda de São Dâmaso I, rua de Santo Antônio, Guimarães – Portugal Cliente: Câmara Municipal de Guimarães Ano do projeto: Abril 2009 – Março 2012 Área: 38.930 m² Custo: 6.437.320,00 € Projecto de Arquitectura: CE-EAUM Arq. Maria Manuel Oliveira, Colaboradores: João Rosmaninho DS, Sofia Parente e Arq. André Delgado Coordenação Técnica: Centro de Estudos da Escola de Arquitectura da Univ. do Minho | CE-EAUM Arq. Maria Manuel Oliveira Coordenação Projecto de Execução: Arq. Miguel Nery Coordenação Administrativa e Financeira : Associação Universidade-Empresa para o Desenvolvimento – TECMINHO Projecto de Arquitectura Paisagista: Arq. Paisagista Maria João Cabral, Arq. Paisagista Daniel Monteiro | Estudo Prévio Projecto de Arte Pública | Toural: Pintora Ana Jotta Projectos de Especialidades Coordenação: Eng. Civil Paulo Silva Arruamentos: Eng. Civis Paulo Silva e Ana Rita Castro Infra-estruturas Hidráulicas: Eng. Civis Paulo Silva, Ana Rita Castro e Marisa Fernandes Infra-estruturas eléctricas e de Iluminação : Eng. Electrotécnicos Raúl Serafim, Ricardo Pereira e Vasco Sampaio Luminotecnia: Eng. Electrotécnico Raúl Serafim Infra-estruturas de Telecomunicações: Eng. Electrotécnicos Raúl Serafim, Ricardo Pereira e Vasco Sampaio Plano de Gestão de Resíduos da Construção: Eng. Civis Paulo Silva e Ana Rita Castro Plano de Segurança e Saúde: Eng. Civis Paulo Silva e Pedro Pereira Consultorias História da Arquitectura e da Cidade: Arq. Jorge Correia Ambiente Pedonal nas Cidades: Arq. e Eng. Civil André Fontes Mobilidade: Eng. GNG.APB António Babo Conservação e trasladação de Fontes e Cruzeiro: Eng. DEC UM Paulo Lourenço Execução Período: Outubro 2010 – Março 2012 Fiscalização CMG: Eng. Civis Margarida Pereira e Gilberto Fernandes, fiscal Adão Ribeiro Construtora: Alberto Couto Alves, S.A. Fotos: Rita Burmester, João Filipe Santos, araduca.blogspot.com, André Castanho e CE.EAUM Premiações, exposições, outros: Projecto selecionado pelo Júri da VIII Bienal Iberoamericana de Arquitectura e Urbanismo (BIAU) 2012. Obra registada fotograficamente no livro “Renovação Praça do Toural, Alameda de São Dâmaso, Rua de Santo António, Guimarães, 2010-2012”, ed. Nuno Miguel Borges, 2012, ISBN 978-989-20-3145-3 Projecto exposto em “Lugares Prováveis”, instalação/exposição itinerante organizada pelo Núcleo de Arquitectos da Região de Braga (NARB) – OASRN, Julho – Outubro 2012. |
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Colaboração editorial: Luciana Jobim
Uma beleza de projecto, parabéns à equipa! Lindo mesmo.