Por UNA arquitetos / UNA MUNIZVIEGAS
Ampliação da Casa Boaçava (texto fornecido pelos autores)
O problema aqui era construir a ampliação de uma casa feita há 10 anos. A Casa Boaçava foi projetada em 2009 e inaugurada em 2012.
Fotografias (fase 1): Leonardo Finotti
Com os anos, alguns usos se intensificaram, outros se modificaram. As crianças cresceram. Surgiu a necessidade de um espaço para atividades relacionadas a oficinas de artes corporais, assim como parte da rotina de escritório dos moradores passou a ser realizada em casa.
Isométricas Casa Boaçava – fase 1 e 2
Em resposta a essas demandas, surgiu a oportunidade de compra do terreno vizinho. O projeto é a construção de uma praça que passa a ser o centro do conjunto, que articula novos usos aos existentes.
O volume que ocupava praticamente todo o lote, respeitando os recuos obrigatórios, ganhou um contraponto com o vazio exterior. São três frentes para essa praça, definidas pelas construções: a casa original com o bloco de concreto pigmentado e as duas alas do anexo. Novamente estabelece continuidade com a rua.
Plantas [1] térreo; [2] subsolo; [3] primeiro pavimento; [4] cobertura
Cortes longitudinais e transversais
O piso de madeira existente se estendeu para todos os espaços exteriores interligando também o jardim ao fundo, de onde se descortina a vista do vale do Pinheiros. A praça se completa com o horizonte. Habita-se a geografia se esquecendo do lote.
Fotografias: Leonardo Finotti
Em continuidade, no tempo, o novo volume é todo construído em planos de concreto aparente. Conexões e proteções são metálicas. A ideia é condensar os dois tempos da obra sem diferenciá-los, como se estivessem à espera de um novo complemento. Ao final, não saberemos o que foi feito antes, a casa, ou seu anexo. Poderiam ainda surgir mais intervenções, solução aberta.
Fotografias: Leonardo Finotti
A forma é de cidadela, um vilarejo, com torres, pontes, jardins suspensos, pátios rebaixados e praças cobertas.
A cidadela1 (por Carlos Alberto Maciel)
Diz-se que uma das principais contribuições de Vilanova Artigas à arquitetura brasileira teria sido a introdução da ideia de cidade no desenho da casa paulistana moderna. Daniele Pisani, em seu livro “A cidade é uma casa. A casa é uma cidade. Vilanova Artigas na história de um topos”2, desvenda as possíveis origens dessa ideia que antecede Artigas, nos oferecendo um passeio de dois mil anos que passa por Leon Battista Alberti e Andrea Palladio, recua à Espanha dos Séculos VI e VII através do teólogo e arcebispo Isidoro de Sevilha, passa por autores do Século XIX como Ildefons Cerdà, retorna à modernidade europeia à época do Team X com Aldo van Eyck e outros e, em algum momento, identifica a presença do tema no Memorial para o concurso de Professor Titular na FAU-USP elaborado por Paulo Mendes da Rocha em 1998. Chegamos aqui a uma circunstância da história desse topos que nos interessa: a sua entrada no Século XXI. Contida na genealogia daquela máxima está outra, de menor extensão temporal, que conecta Artigas a Mendes da Rocha, e ambos a uma geração prolífica da arquitetura contemporânea que faz continuar aquilo que se conhece como Escola Paulista. Fazem parte dessa geração os arquitetos Cristiane Muniz e Fernando Viégas, formados na FAUUSP na década de 90 do Século passado. A Casa Boaçava em São Paulo foi projetada desde 2009 pelo Una Arquitetos sob sua coordenação3.
Para compreendermos melhor essa obra é preciso antes reconhecer os tempos de sua realização. A primeira Casa Boaçava foi projetada em 2009; sua ampliação, em 20184. O intervalo entre ambos informa a mudança: nas necessidades dos seus moradores; nos princípios que fundamentam as decisões dos arquitetos.
A casa de 2009 pode ser lida como herdeira direta do repertório teórico e projetual da Escola Paulista: eleva-se sobre poucos apoios promovendo uma integração radical entre interior e exterior e uma continuidade entre rua, jardim frontal, áreas de convivência e jardim com espaços de lazer; promove uma clara diferenciação entre espaços servidos e servidores, que orienta a própria imagem e ambiência dos espaços principais através do plano-volume que a um só tempo organiza linearmente os serviços, conforma parte da estrutura portante e conduz o olhar que atravessa o vazio dos espaços de convivência; oferece uma sombra qualificada, apenas delicadamente protegida pelas vidraças, que interpreta alguns dos melhores momentos da arquitetura paulista dos anos 60 e 70; por último, estabelece uma oposição entre o volume elevado, que se apresenta como uma construção geométrica e construtivamente precisa, e o desenho do chão, que reforça um sentido de urbanidade, editando sutilmente a topografia original para criar planos de uso que qualificam os diversos recintos de modo contínuo, o que retoma um tema central da obra de Vilanova Artigas5. Um belo desenho que evidencia essa estratégia é a terceira planta da casa que, embora tendo apenas dois pavimentos, os arquitetos fazem representar para revelar a variada geometria das contenções em meia altura que viabilizam o trecho rebaixado da área social que se estende para o jardim.
Como toda boa interpretação sempre acrescenta mais uma camada àquela matriz que lhe inspira, a casa Boaçava desloca a exploração da oposição dialética entre o desenho do chão e o da construção da espacialidade à matéria: o concreto aparente dos elementos que organizam os espaços ao nível do chão é pigmentado com óxido de ferro enquanto o concreto do volume elevado – a construção – tem pigmentação natural. Metaforicamente o solo se eleva e é reconfigurado, não apenas na sua topografia, mas como matéria que media usos e promove os fechamentos necessários às áreas de serviço. É verdade que o próprio Artigas usou artifício semelhante, como nas bases em pedra da Garagem de Barcos Santa Paula. Entretanto, nas explorações anteriores há uma mudança radical da materialidade entre embasamento e construção, algo presente na arquitetura há séculos. Aqui a exploração é mais sutil e incide sobre uma mesma técnica e uma mesma matéria, que resulta diversa devido à intervenção no processo construtivo. A alteração cromática modifica a ambiência e confere àquele material já amplamente usado na arquitetura uma nova camada de significado que o desloca da industrialização em direção a uma certa artesania, a rememorar técnicas vernáculas6. Nesse aspecto, a Casa Boaçava poderia ser entendida para além da modernidade que informa as suas principais estratégias projetuais.
Falamos do chão. Passemos à construção. Os volumes elevados da arquitetura paulista eram em sua maioria caixas com aberturas predominantemente unidirecionais e empenas cegas7. Definiam uma diferenciação entre um domínio público, que se estendia sob a sombra da casa, e um espaço de intimidade e introspecção, acolhido pelo artefato construído. Na casa Boaçava, a oposição se dá na organização programática da própria casa: espaços coletivos no chão; espaços individuais acima. O coletivo retorna no terraço superior, aberto ao sol. Entretanto, o que mais interessa aqui é o modo como os espaços individuais se dispõem. Ao contrário de uma certa abstração da usual abertura frente-fundos e da repetição modular que caracterizam grande parte da organização dos espaços íntimos das casas modernas, a disposição dos dormitórios da Casa Boaçava os pulveriza em uma estrutura ambiental que autonomiza as unidades ao separá-las por intervalos abertos não funcionalizados. É como se cada célula pudesse exercer sua singularidade e identidade, com privacidade e introspecção, e também usufruir de diferentes visadas do exterior e da experiência de espaços abertos ao se articularem aos intervalos que as separam. Essa ordem, aqui limitada a um conjunto de quatro dormitórios e um escritório, poderia perfeitamente ser ampliada para uma organização de um tecido urbano variado e diverso, em que espaços fechados se alternam a passagens e aberturas. Tais intervalos assumem o comando da lógica formal operando subtrações no volume principal em que a massa prevalece sobre a abertura, ao contrário da matriz formal moderna que privilegiava o vazio, a abertura e a transparência. Uma vez mais, a matéria adquire um protagonismo e inverte a expectativa daquela matriz dominante da Escola Paulista. A oposição entre a massa esculpida e a transparência do térreo acentua a radical distinção entre abertura e reclusão, coletivo e individual. Por outro lado, aquela estrutura ambiental parece informar o que estaria por vir.
Avancemos então quase uma década. Chegamos à ampliação da Casa Boaçava. Como nos ensina Paulo Mendes da Rocha, a beleza de um anexo está no modo como se coloca em relação àquele elemento principal que motivou sua realização. Nesse caso entretanto não se trata de um anexo no sentido usual, em que duas edificações de tempos distintos se organizam com certa diferenciação hierárquica8. Trata-se aqui de um desenvolvimento, uma transformação que introduz novas espacialidades, novas formas e novas relações entre as partes, redefinindo o todo e configurando uma nova unidade: uma cidadela9. Cidadela não como forte ou lugar de proteção, mas como um conjunto de edificações que a um só tempo preservam certa autonomia e constituem um todo. Este todo apresenta-se como uma micro estrutura urbana ao sobrepor à estrutura urbana de fato uma segunda camada que passa a organizar a vida doméstica para além dos seus espaços interiores, mas em uma rede variada de construções e espaços livres que, ao contrário das fortalezas fechadas que usualmente caracterizam as cidadelas medievais, amplia as possibilidades de integração com a paisagem e com a cidade10. A opção pela fragmentação programática e pela variedade volumétrica evita a mera repetição das soluções existentes na primeira casa, que passa a ser uma das partes do todo. À oposição entre a concentração da casa original e a dispersão das novas construções se soma outra oposição: aquela entre a ênfase no desenho do volume e o cuidado na qualificação dos vazios. O apuro na elaboração dos vazios “entre” e “através” dos novos elementos amplifica o sentido da casa não como um objeto contra o fundo do terreno, mas como um redesenho da totalidade do lote, reforçando o uso e a importância dos espaços livres, cuja forma e ambiência os fazem tão relevantes quanto os espaços abrigados11. Se na casa original os vazios são os elementos atípicos e de pequena escala que esculpiam o volume, aqui eles adquirem uma escala em que passam a conformar alguns espaços de sociabilidade e encontro entre os recintos interiores, como no grande deck que se desenvolve desde a rua, tem um momento de sombra sob a nova construção, continua na mesma cota para usufruir da sombra da futura árvore, e desce uma ampla escadaria para conectar a cota inferior do jardim da casa matriz e abrigar uma hidromassagem. Por sua centralidade e escala, transforma-se no protagonista do conjunto: o lugar gregário12. Outro espaço articulador ocorre sobre laje, no segundo pavimento: neste caso, um terraço jardim amplo oferece uma conexão ao ar livre entre o escritório – a “torre” principal da cidadela – e o estar no pavimento superior do novo pavilhão lateral. Aqui se dá uma inversão que modifica a experiência predominante dos espaços: a vista a distância a sudeste, que orienta a maioria das aberturas e a própria implantação que abre a praça naquela direção, deixa de ser referência para a orientação da sala de estar elevada, que se volta, ao contrário, para noroeste, estabelecendo uma abertura visual de menor extensão e portanto com maior intimidade, além de se transbordar para o mencionado terraço jardim. Esse, por sua vez, adquire também maior intimidade e fechamento em relação à paisagem dominante devido à presença do volume edificado do estar superior e ao paisagismo mais denso, oferecendo uma outra experiência ao ar livre, diferente daquela do grande deck-praça.
Se o térreo da nova construção constitui um segundo espaço de convivência, exterior, análogo e complementar à sequência espacial interna e abrigada do térreo da casa original, é na elaboração volumétrica do segundo pavimento que se dá a maior diferenciação em relação à construção pré-existente: os dois volumes quadrados, idênticos, com 6 por 6 metros, constituem duas identidades que se colocam em complemento ao volume original, evitando tanto a unidade da forma simples como a mera repetição do volume original, e produzindo assim um skyline variado. Num contexto diferente, quando chamado a projetar a residência de sua irmã em lote vizinho à sua, Paulo Mendes da Rocha replicou o desenho de sua casa com mínimas variações. Tratava-se ali de um discurso sobre o caráter prototípico da habitação, muito coerente com o ideário moderno da industrialização pautado pela estandardização. Aqui, o caminho é outro, que se afasta do genérico e da repetição, do industrial e do padronizado, para reconhecer o específico e o complementar, o artesanal e o singular.
Aqui o destacamento parcial entre os espaços íntimos autonomizados do segundo pavimento da casa matriz se radicaliza para conceber volumes e espaços independentes, formal e programaticamente. Essa autonomia poderia resultar em um conjunto de elementos desconectados. Entretanto, os arquitetos sabidamente os articulam em uma variedade de conexões que transforma a organização original da casa – linear em baixo, radial em cima, mas com um único elemento articulador definido pela escada central – em uma rede que cria atalhos e pontes, alterna dentro e fora, térreo e pavimento superior, e multiplica as alternativas de acesso entre os pavimentos pela introdução de duas novas escadas. Em outras palavras, a topologia da casa original, linear e funcional, se transforma em uma rede, dispersa e análoga à urbana, não funcionalizada. Essa transformação resulta em uma experiência mais rica e variada do espaço, que é reforçada pelo cuidado na qualificação dos novos recintos em termos de luz, sombra, penumbra, transparência, opacidade e translucidez, intimidade e extroversão. Surgem mais tonalidades entre o aberto e o fechado, o transparente e o opaco, revelando a maturidade de um olhar projetual que não se seduz com a abertura fácil para a paisagem, mas preza a introspecção, a intimidade e o mistério. Tudo isso se revela especialmente no ambiente do escritório – a “torre” – cuja localização no conjunto o transforma em um articulador potente, com múltiplos acessos – desde o segundo pavimento da casa original através da ponte-atalho que se conecta a um dos intervalos abertos; desde a rua e a sombra da praça pela nova escada aberta; desde o terraço e o novo estar. Este destino, protagonista no conjunto, tem o pé-direito elevado a 3,80 metros, o que o singulariza em relação à altura do pavimento convencional em torno de 2,50 metros, predominante nos demais recintos da casa. Associada a essa escala vertical ampliada, a vidraça voltada para a praça e para a paisagem é predominantemente translúcida, gerando uma atmosfera de introspecção que, entretanto, permite a visão da paisagem por um recorte estrategicamente disposto à altura do olhar, redefinindo a relação da vista como um quadro. Essa mesma estratégia de enquadramento de vistas, para a paisagem da cidade e para diferentes paisagens da própria cidadela, comparece ao longo de outros percursos e recintos em pequenas janelas que resguardam o interior ao mesmo tempo em que ampliam o domínio visual que constitui a base do sentido de privacidade e segurança, oferecendo miradas imprevistas em ângulos menos usuais, como na chegada da escada ao estar do segundo pavimento ou o pequeno rasgo no escritório, voltado para a rua.
A “torre” é também um sinal da transformação do repertório que originalmente informou a realização da primeira casa: em lugar da horizontalidade e da transparência características da arquitetura moderna paulista13, predomina o acento vertical e a demarcação mais sutil dos limites entre interior e exterior. Essa verticalidade ultrapassa em altura o volume original, bem como redesenha o chão com mais vigor, não apenas reconhecendo a variação topográfica original, mas criando um pavimento escavado de serviços análogo aos que fazem Artigas na casa Taques Bittencourt ou Paulo Mendes da Rocha na casa Fernando Millan. Nessa operação os arquitetos retomam a mesma distinção entre espaços servidos e servidores, agora em termos espaciais, da disposição espacial visível em corte. As escadas sobrepostas que conectam tanto escritório como serviços à praça reforçam a experiência do deslocamento vertical, e abrem espaço para uma analogia às imagens poéticas do sótão e do porão presentes na Poética do Espaço de Gaston Bachelard.
O deslocamento do objeto funcional em direção à rede articulada de espaços não funcionalizados aponta outra transformação no olhar dos arquitetos: um amolecimento no trato das questões funcionais ao desenhar os novos espaços com uma certa qualidade específica que se realiza na sua materialidade e na conectividade com os espaços adjacentes, ou seja, a partir da ênfase no desenho dos elementos permanentes, e menos condicionados por qualquer aspecto programático, mais circunstancial e impermanente. Isso permitiria imaginar a troca dos usos entre os diversos espaços ou mesmo que possam vir a acomodar no futuro outros usos para além do que se planejou. Sua intencional indeterminação permite pensar o conjunto como uma casa, com os usos propostos nas legendas do projeto, mas como um conjunto de múltiplas habitações, que convivem ao redor dos variados espaços abertos, realizando de fato a ideia da cidadela.
A Cidadela da casa Boaçava parece introduzir uma nova interpretação para aquele topos milenar que conecta casa e cidade em uma relação dialética. Como a cidade, pode ser lida como uma construção que se faz no tempo, sempre inconclusa14. Se ampliarmos essa compreensão, poderíamos dizer que pode vir a ser intergeracional e não autoral, ou resultado de múltiplas contribuições. Isso permite imaginar o seu devir: pensá-la como uma infraestrutura, que será permanentemente completada e ressignificada por seus diferentes usuários, transformada pelas mãos de outros, em outras circunstâncias. Aí talvez resida sua maior beleza.
Carlos Alberto Maciel é arquiteto e doutor em teoria e prática de projeto pela Escola de Arquitetura da UFMG, onde é professor. É sócio do escritório Arquitetos Associados e autor dos livros Arquitetura como Infraestrutura – 3 volumes e Territórios da Universidade. Permanências e Transformação. É editor de MDC.
1 – Este ensaio foi escrito a partir de um encontro fortuito: Fernando mostrou fotos da casa em fase final de construção. Ao vê-las, mencionei que lembrava uma cidadela. Essa impressão convergiu para o que motivou a realização da obra. Algum tempo depois, veio o convite para escrevê-lo, acompanhado de um belo ensaio fotográfico por Leonardo Finotti e pelos impecáveis desenhos do projeto executivo da ampliação da casa. Seu título remete àquele momento. Ele foi originalmente publicado, em espanhol, na revista PLOT – MACIEL, Carlos A. B.. La Ciudadela. PLOT, v. DIC 2021, p. 119-123, 2021 – e em português na revista Projeto em 12 de abril de 2021 – .
2 – PISANI, Daniele. “A cidade é uma casa. A casa é uma cidade”. Vilanova Artigas na história de um topos. Tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Ecidade, 2019.
3 – Projetada por UNA Arquitetos: Cristiane Muniz, Fábio Valentim, Fernanda Barbara, Fernando Viégas. Colaboradores: Ana Paula de Castro, Bruno Gondo, Eduardo Martorelli, Enk Te Winkel, Igor Cortinove, Marta Onofre, Miguel Muralha, Roberto Galvão Jr., Sílio Almeida.
4 – Projetada por UNA Arquitetos: Cristiane Muniz, Fábio Valentim, Fernanda Barbara, Fernando Viégas. Colaboradores: Joaquin Gak, Júlia Jabur, Laís Labate, Larissa Urbano, Manuela Raitelli, Marie Lartigue, Matheus Pardal.
5 – Shundi Iwamizu faz extensa leitura dessa estratégia na obra de Artigas, partindo da análise da Rodoviária de Jaú e percorrendo inúmeros outras obras em que a exploração da oposição dialética entre desenho do chão e da construção está na base da poética do arquiteto. Cf. IWAMIZU, Cesar Shundi. A estação rodoviária de Jaú e a dimensão urbana da arquitetura. São Paulo: FAUUSP, 2008. Dissertação de Mestrado.
6 – Como sugerido pelos próprios arquitetos no memorial do projeto de 2009: “O muro de concreto apóia a construção e divide o sítio longitudinalmente, dando independência às áreas de serviço. Essa base foi pigmentada com óxido de ferro. A presença deste material, que lembra a taipa, faz a transição das áreas externas às internas.” (grifo meu). Cabe aqui uma observação de caráter metodológico: este ensaio foi elaborado a partir da análise das fotografias e dos desenhos do projeto executivo da ampliação da casa, antes da leitura dos memoriais descritivos elaborados pelos arquitetos. Depois de escrito, foi confrontado com os memoriais. As notas relativas a esse “encontro” entre intenções e leituras se apresentam ao longo do texto. As diversas coincidências entre leitura e memorial revelam a consistência entre as intenções projetuais e a obra construída.
7 – Esta definição rápida é obviamente plena de exceções. Entretanto é possível relacionar, sem a pretensão de esgotar o tema, algumas residências que reeditaram este princípio e lhe deram essa mesma formalização, com variações: de Artigas são mais conhecidas a Casa Olga Baeta (1957) com aberturas laterais e empenas na frente e no fundo; a Casa José Mario Taques Bittencourt (1959), que introduz o pátio central e a articulação em meios níveis com rampa que também redesenha o chão, e apresenta empenas laterais que descem para encontrar o solo, antecipando a estratégia da diluição da parede presente na FAUUSP; a Casa Mendes André (1968) com pavilhão longilíneo aberto para a rua e para o fundo do terreno; de Joaquim Guedes, a Residência Cunha Lima (1958) que, além da predominante abertura frente-fundo, introduz por questões geomorfológicas, os famosos quatro pontos de apoio que vieram posteriormente a caracterizar parte da arquitetura paulista; de Carlos Millan, as casas Roberto Millan (1960) e Antônio D’Elboux (1962), ambas de forte inspiração na arquitetura de Le Corbusier; de Paulo Mendes da Rocha, a sua própria casa (a partir de 1964), a Casa Mário Masetti (1967-70), a Casa James King (1972) e a Casa Fernando Milan (a partir de 1970) são as mais conhecidas de uma família de casas brutalistas elevadas sobre poucos apoios gerando uma sombra habitada sob a qual se desenvolvem os jardins ou se prolonga a esfera urbana. Dentre essas, a última, parcialmente cravada na topografia, diferencia os planos social e íntimo entre térreo e pavimento superior e, de modo radical, leva o asfalto da rua para o piso da sala de estar como forma de enfatizar a continuidade entre casa e cidade. Para aprofundar o tema, ver: ACAYABA, Marlene Milan. Residências em São Paulo. 1947-1975. São Paulo: Projeto, 1986. COTRIM, Marcio. Vilanova Artigas. Casas Paulistas. 1967-1981. São Paulo: Romano Guerra Editora, 2017. MAHFUZ, Edson. Transparência e sombra: O plano horizontal na arquitetura paulista. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 079.01, Vitruvius, dez. 2006 <;. PISANI, Daniele. Paulo Mendes da Rocha. Obra Completa. São Paulo: Gustavo Gilli, 2013.
8 – Confirma essa leitura a memória descritiva dos autores: “Em continuidade, no tempo, o novo volume é todo construído em planos de concreto aparente. Conexões e proteções são metálicas. A ideia é condensar os dois tempos da obra sem diferenciá-los, como se estivessem à espera de um novo complemento. Ao final, não saberemos o que foi feito antes, a casa, ou seu anexo.”
9 – Da memória descritiva dos autores: “A forma é de cidadela, um vilarejo, com torres, pontes, jardins suspensos, pátios rebaixados e praças cobertas.”
10 – Da memória descritiva dos autores: “O piso de madeira existente se estendeu para todos os espaços exteriores interligando também o jardim ao fundo, de onde se descortina a vista do vale do Pinheiros. A praça se completa com o horizonte. Habita-se a geografia se esquecendo do lote.”
11 – Da memória descritiva dos autores: “O volume que ocupava praticamente todo o lote, respeitando os recuos obrigatórios, ganhou um contraponto com o vazio exterior. São três frentes para essa praça, definidas pelas construções: a casa original com o bloco de concreto pigmentado e as duas alas do anexo. Novamente estabelece continuidade com a rua.”
12 – Da memória descritiva dos autores: “O projeto é a construção de uma praça que passa a ser o centro do conjunto, que articula novos usos aos existentes.”
13 – Ver MAHFUZ, Edson. Transparência e sombra: O plano horizontal na arquitetura paulista. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 079.01, Vitruvius, dez. 2006 <;.
14 – Da memória dos autores: “Poderiam ainda surgir mais intervenções, solução aberta.”
Sobre o projeto: Entrevista exclusiva para MDC.
por Cristiane Muniz (C.M.) e Fernando Viégas (F.V.)
MDC – Como vocês contextualizam essa obra no conjunto de toda a sua produção?
C.M. / F.V. – Ao mesmo tempo em que é continuidade de uma obra nossa, acreditamos que seja um trabalho que abriu novas perspectivas de investigação. Partimos de discussões evidentemente conceituais para tomar as decisões formais e construtivas. Alguns projetos posteriores a esse estabelecem desdobramentos de certas questões experimentadas aqui. As casas são modelos para escalas maiores urbanas, como é o caso do Quarteirão da Educação em Diadema.
MDC – Como foi o mecanismo de contratação do projeto?
C.M. / F.V. – A contratação foi direta. Havíamos construído a primeira casa em 2009 e os moradores nos convidaram para ampliarmos a casa em 2019, após a aquisição do terreno vizinho.
MDC – Como foi a fase de concepção do projeto? Houve grandes inflexões conceituais? Vocês destacariam algum momento significativo do processo?
C.M. / F.V. – A principal decisão de projeto foi estabelecer uma continuidade em relação à construção original. Optamos por utilizar os mesmos materiais e os mesmos construtores. Nossa intenção foi diluir os limites do novo e velho, a ponto de não ser possível identificar quem veio antes, ou depois. O que era volume construído, em contraponto, virou uma praça, quase em negativo.
MDC – Nas etapas de desenvolvimento executivo e elaboração de projetos de engenharia houve participação ativa dos autores? Houve variações de projeto decorrentes da interlocução com esses outros atores que modificaram as soluções originais? Se sim, podem comentar as mais importantes?
C.M. / F.V. – A casa original teve um trabalho técnico de calculo estrutural e sistema construtivo muito sofisticado. Paredes de concreto com 17 cm se dobram para formar o volume superior apoiado em dois pilares e uma parede, realizando grandes balanços. A ampliação segue a lógica de planos de concreto verticais e horizontais, sem vigas internas. O maior esforço foi acomodar um grande jardim na cobertura, incluindo algumas pitangueiras. Tecnicamente, o mais complexo foi executar o sistema de condicionamento de ar como um pleno, evitando os dutos.
MDC – Os autores dos projetos tiveram participação no processo de construção/implementação da obra?
C.M. / F.V. – Sim, os arquitetos autores acompanharam toda a execução das obras. A parceria antiga com a construtora facilitou muito o desenvolvimento dos detalhes. Incorporamos, sempre, muitas sugestões dos construtores. Algumas decisões de serralheria, como o portão de vão total, foram feitas diretamente a partir de ensaios de carga na própria obra.
MDC – Vocês destacariam algum fato relevante da vida do edifício/espaço livre após a sua construção?
C.M. / F.V. – O desenho da praça central absorvia um desnível com relação ao fundo do lote. Foi proposta uma arquibancada de contemplação da paisagem da várzea do Rio Pinheiros. Ao longo do projeto conversamos muito com os moradores sobre possíveis usos dessa praça, que formava, de certo modo, o desenho de um anfiteatro aberto. Após a construção, um dos usos imaginados se tornou frequente: espaço para música. Regularmente músicos são convidados para tocar para convidados que se acomodam na arquibancada e configuram um auditório ao ar livre. Emocionante.
MDC – Se esse mesmo problema de projeto chegasse hoje a suas mãos, fariam algo diferente?
C.M. / F.V. – Faríamos tudo exatamente igual. Quase todos os projetos que realizamos, após certo tempo, imaginamos alguns reparos, mas nesse caso não mudaríamos nada, nenhum detalhe.
MDC – Como vocês contextualizam essa obra no panorama da arquitetura contemporânea do seu país?
C.M. / F.V. – Como tudo o que fazemos, acreditamos que seja parte de uma construção cultural coletiva. Tentamos fazer pequenas contribuições ao conhecimento com nossas pesquisas projetuais.
MDC – Há algo relativo ao projeto e ao processo que gostariam de acrescentar e que não foi contemplado pelas perguntas anteriores?
C.M. / F.V. – Um projeto como esse necessita que o processo com os clientes seja de total confiança e de que a relação com os trabalhadores da construção seja de parceria.
projeto executivo
PARTE 1:
PLANTAS, CORTES E ELEVAÇÕES
13 pranchas (pdf).
15,96mb
PARTE 2:
AMPLIAÇÕES
13 pranchas (pdf).
20,97mb
PARTE 3:
DETALHES E MOBILIÁRIO
6 pranchas (pdf).
4,57mb
ficha técnica do projeto
Local: São Paulo – SP
Ano de projeto: 2018
Ano de conclusão: 2020
Área: 640 m²
Autores: UNA arquitetos: Cristiane Muniz, Fabio Valentim, Fernanda Barbara, Fernando Viégas
Colaboração: Joaquin Gak, Júlia Jabur, Laís Labate, Larissa Urbano, Manuela Raitelli, Marie Lartigue, Matheus Pardal
Construção: F2 Engenharia
Estrutura: Companhia de Projeto
Estrutura de concreto: Breno Rodrigues
Instalações: Zomaro
Iluminação: Foco
Sistemas: Oguri
Paisagismo: Soma
Irrigação: Regatec
Ar Condicionado: Drawing
Impermeabilização: Proassp
Fotos: Leonardo Finotti
Contato: contato@unamunizviegas.com.br
galeria
colaboração editorial
deseja citar esse post?
MUNIZ, Cristiane. VALENTIM, Fabio. BARBARA, Fernanda. VIÉGAS, Fernando. “Ampliação da Casa Boaçava”. MDC: Mínimo Denominador Comum, Belo Horizonte, s.n., ago-2023. Disponível em //www.28ers.com/2023/08/01/ampliacao-da-casa-boacava. Acesso em: [incluir data do acesso].