por Estudio Flume
Casa do Mel (texto fornecido pelos autores)
O projeto Casa do Mel propõe atender dois objetivos do território onde se insere. O ambiental, de preservar as áreas ainda não ocupadas e de restaurar as áreas já degradadas. E o socioeconômico, de alimentar e gerar renda para a população local.
Fotografia: Christian Teshirogi
A construção realizada para a Associação dos Apicultores de Canaã dos Carajás (AACC), chamada pelas associadas e associados “Casa do Mel”, foi concluída em 2018, teve como objetivo sediar o processo de beneficiamento do mel, coletado pelos seus cinquenta e três associados – pequenos produtores rurais locais. Localiza-se no município de Canaã dos Carajás, no sudeste do estado do Pará, na Amazônia legal brasileira, cidade que, como tantas outras do Norte brasileiro, emergiu a partir de assentamentos agrícolas. Este, em particular, originou-se do Projeto de Assentamento Carajás, implementado em 1982 pelo Grupo Executivo das Terras do Araguaia e Tocantins (GETAT), do Governo Federal e, cujo nome adotado advêm da sua proximidade com a Serra dos Carajás, território originalmente povoado pelos grupos indígenas Karajá e Kayapó.
Fotografia: Christian Teshirogi
Desde a década de 1960, a Serra dos Carajás, assim como seu entorno, tem atravessado uma profunda modificação paisagística devido aos grandes projetos de mineração instalados em seu território, atualmente densamente povoado. Grandes centros urbanos se instalaram nas proximidades do acidente geográfico, como resultado da exploração da jazida de minério de ferro, identificada por uma equipe de geólogos em 1964, processo descrito pelo engenheiro Newton Pereira de Rezende no livro “Carajás: memórias da descoberta”, publicado em 2009, onde faz menção ao “distrito ferrífero da Serra de Carajás”.1
Sobre a riqueza da flora e fauna da região, o plano de manejo florestal emitido por Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade descreve: “Inserindo-se no Centro de Endemismos Xingu-Tocantins, a Floresta Nacional de Carajás se caracteriza como uma área de elevada biodiversidade e existência de diversas espécies endêmicas da flora e da fauna, especialmente de aves, répteis, anfíbios e plantas associadas aos ecossistemas abertos sobre canga.”2
O território onde se insere este projeto é marcado por duas urgências, de um lado a urgência de preservar as áreas ainda não degradadas e/ou ocupadas e de restaurar as áreas já degradadas, como os pastos de criação extensiva de gado mal manejados. De outro, a urgência de alimentar e gerar renda para a população local. O objetivo do projeto foi responder a essas duas urgências de forma autossustentável através do apoio à produção de mel, integrando a dimensão ambiental e social.
Fotografia: Christian Teshirogi
Produzir mel pode acelerar a restauração de áreas degradadas e conservar a biodiversidade local – visto que as e os apicultores são diretamente interessados na disponibilidade de alimento para suas abelhas e, portanto, na presença de áreas protegidas. Além disso, a Casa do Mel permite agregar valor ao mel produzido pela comunidade e gera oportunidade de aumentar a produção individual e a quantidade de membros da associação diretamente envolvidos na produção.
Isométrica explodida + Planta layout
Neste contexto, no desenvolvimento de projetos arquitetônicos vinculados às soluções socioambientais em áreas rurais, buscando o fortalecimento de oportunidades na economia local e a geração de renda, com foco na segurança alimentar, visualizamos três escalas de aproximação para abordar a proposta do projeto e construção da Casa do Mel.
1- Tecnologia / detalhe: o estudo de soluções técnicas para construir com o material fabricado e comercializado no entorno imediato, no centro urbano mais próximo. Em áreas rurais, afastadas dos centros urbanos, optamos por criar estruturas resilientes no meio no qual se inserem que não demandem alto grau de manutenção.
2- Arquitetura / espaço: o entendimento espacial do ambiente de trabalho no caráter de cooperativas, como alternativa às condições adversas e de vulnerabilidade social.
3- Território / sistema: o fortalecimento dos sistemas urbanos constituídos por povoados de pequeno e médio porte que conformam uma rede que se fortalece regionalmente.
Em visita ao sítio, realizada em 2017, observamos que, no terreno em declive com aproximadamente sete metros de desnível entre frente e fundo, se destacava o afloramento rochoso logo no acesso à área, originalmente parte integrante de uma fazenda, cercada por pastos, característicos da pecuária extensiva praticada nos latifúndios.
Implantação Metropolitana
Portanto, optamos pela suspensão da construção por pilotis, elevando a laje de piso e preservando o perfil natural do terreno e as rochas, garantindo a mínima movimentação de solo. A solução adotada, além de ser mais favorável do ponto de vista econômico, se apresenta principalmente mais favorável do ponto de vista ambiental por não alterar a topografia natural do terreno e respeitar o caminho das águas de chuva enquanto não impermeabiliza o solo, mantendo a área de absorção. Esta solução favoreceu, também, a circulação de ar entre a edificação e o solo, contribuindo para o conforto térmico, numa área onde predominam altas temperaturas, típicas da região norte do país.
Cortes B e D
Fotografia: Christian Teshirogi
1 – Rezende, N. Carajás: memórias da descoberta, Editora Gráfica Stamppa, 2009, p. 7.
2 – CMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Plano de Manejo Flona Carajás. Volume II. 2016, p. 16.
Sobre o projeto: Entrevista exclusiva para MDC.
por Noelia Monteiro (N.M.)
MDC – Como você contextualiza essa obra no conjunto de toda a sua produção?
N.M. – A Casa do Mel foi uma obra importante no conjunto da produção do escritório porque foi a primeira na qual conseguimos trabalhar em todas as fases do projeto com o suporte de projetos complementares para estrutura, hidráulica, energia, etc. Isso proporcionou um tempo adequado de amadurecimento das fases do projeto e aprimoramento do material produzido. Consequentemente reuniões com a equipe envolvida para o entendimento do que seria construído.
MDC – Como foi o mecanismo de contratação do projeto?
N.M. – O escritório foi solicitado a realizar uma visita para assessoria e trabalho sobre uma planta de lay-out que a associação de apicultores tinha adquirido como doação de autoridades locais. Após apresentarmos ideias de como proporcionar um ambiente com conforto térmico, fomos contratados para desenvolver o projeto. No momento da contratação da obra, houve um processo de licitação por convite, no qual as experiências prévias de construção em áreas rurais e com comunidades, deram suporte na escolha do escritório para a fase da construção.
MDC – Como foi a fase de concepção do projeto? Houve grandes inflexões conceituais? Você destacaria algum momento significativo do processo?
N.M. – A associação de apicultores inicialmente tinha colocado como condição do projeto uma sala de reuniões e assembleias periódicas. Na escassez de recurso para construção do espaço, quando consultamos ao grupo sobre a periodicidade de uso do espaço, nos informaram que seria utilizado uma vez por mês. A partir desta resposta, surgiu a ideia de deslocar o volume de áreas de serviço em relação ao volume de área produtiva, e cobrir todo o conjunto com um telhado suspenso em relação a laje, gerando esta área de reunião no espaço entre ambos volumes.
MDC – Nas etapas de desenvolvimento executivo e elaboração de projetos de engenharia houve participação ativa dos autores? Houve variações de projeto decorrentes da interlocução com esses outros atores que modificaram as soluções originais? Se sim, pode comentar as mais importantes?
N.M. – Inicialmente o projeto previa as quatro fachadas com elemento vazado, ou cobogó pré-fabricado que conseguimos adquirir nas proximidades do terreno de implantação do projeto. Quando o projeto passou pela fase de aprovação da vigilância sanitária, a condição para aprovação foi de trabalhar apenas com janelas acima de 1,80 m de altura. A ideia de um ambiente ventilado permanentemente só foi possível de viabilizar na copa e refeitório.
MDC – Os autores dos projetos tiveram participação no processo de construção/implementação da obra? Se sim, quais os momentos decisivos dessa participação?
N.M. – Realizamos o gerenciamento e administração da obra para conseguir viabilizar o projeto da forma que tinha sido concebido. Após várias tentativas de contratação de empreiteiras da região, concluímos na necessidade de nos envolver no processo de construção, uma vez que os projetos costumam ser muito pequenos e em locais de difícil acesso para as empreiteiras se interessarem pelo serviço. Ao mesmo tempo, a necessidade de seguir as especificações de um projeto executivo, inviabilizam que o serviço possa ser realizado por um construtor local sem treinamento na leitura do material.
MDC – Você destacaria algum fato relevante da vida do edifício/espaço livre após a sua construção?
N.M. – Um fato curioso que aconteceu após a obra estar pronta, foi que quando os apicultores começaram a utilizar o espaço, relataram que o local era completamente fresco e arejado. Essa constatação foi muito gratificante, já que ao iniciarmos o diálogo para desenvolvimento do projeto, o grupo tinha a expectativa de instalação de ar condicionado. Após reuniões com maquetes para discutir conceitos como cobertura dupla e ventilação cruzada, o grupo chegou à conclusão que com essas soluções arquitetônicas, o recurso necessário para um sistema de ar condicionado, poderia ser direcionado para outras finalidades do projeto. E uma consequente redução das despesas mensais da obra construída.
MDC – Se esse mesmo problema de projeto chegasse hoje a suas mãos, faria algo diferente?
N.M. – É difícil contextualizá-lo do momento no qual começou a ser concebido, entre 2016 e 2017. Ele é resultado do amadurecimento de várias experiências prévias entre os estados de Pará e Maranhão. Pensando nesses anos transcorridos, tal vez algo que poderia ter sido elaborado em conjunto com os apicultores, seria um projeto paisagístico para contenção dos fortes ventos, pelo projeto está implantado em uma área completamente descampada. Mesmo que sem recurso e contratação específica deste escopo, nos projetos subsequentes paisagem e arquitetura começaram a ser trabalhados como indissolúveis.
MDC – Como você contextualiza essa obra no panorama da arquitetura contemporânea do seu país?
N.M. – A Casa do Mel foi a primeira obra construída publicada de Estúdio Flume, inclusive fora do Brasil. Entendemos que isto tem a ver menos com elementos de desenho arquitetônico e mais com características próprias do alcance da arquitetura como disciplina capaz de transformar de alguma maneira a realidade e o cotidiano de um grupo de trabalhadores. Historicamente o lugar da arquitetura de caráter social tem se concentrado na produção de moradia, estender as possibilidades para o local de trabalho de quem normalmente não teria acesso a um espaço desenhado cuidadosamente desde a disciplina da arquitetura, tem aberto um leque de possibilidades e interesse, principalmente para os estudantes e novas gerações de arquitetos.
MDC – Há algo relativo ao projeto e ao processo que gostaria de acrescentar e que não foi contemplado pelas perguntas anteriores?
N.M. – Entender o projeto não só como um projeto acabado nele mesmo, e sim como parte de um sistema com alcance maior que o da própria obra de arquitetura e um fio condutor no processo de desenho. Nesses termos, o projeto da Casa do Mel tem uma função não mencionada previamente, na preservação da floresta nativa mediante o fortalecimento da cooperativa de apicultores numa região que já tem atravessado processos de desmatamento. A arquitetura só nela mesma tem um alcance finito, mas associada a um trabalho interdisciplinar com outras áreas de conhecimento potencializa seu alcance em termos de se posicionar como uma profissão que proporciona soluções ou minimamente não se alinhar à lógica de esgotamento de recursos naturais.
projeto executivo
EXECUTIVO COMPLETO
14 pranchas (pdf).
11,81mb
localização e ficha técnica do projeto
Local: Canaã dos Carajás – PA
Ano de projeto: 2017
Ano de execução e conclusão da obra: 2018
Área Construída: 240 m²
Autores: Noelia Monteiro e Christian Teshirogi
Colaboração: Júlia Marini e Nathalia Appel
Arquitetura: Estudio Flume
Estrutura: Megalos engenharia
Instalações Hidráulicas e Elétricas: Ideale engenharia
Construtor: Miguel Noleto Machado
Fotos: Christian Teshirogi
Contato: info@estudioflume.com
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colaboração editorial
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MONTEIRO, Noelia. TESHIROGI, Christian. “Casa do Mel”. MDC: Mínimo Denominador Comum, Belo Horizonte, s.n., ago-2023. Disponível em //www.28ers.com/2023/08/11/casa-do-mel/ . Acesso em: [incluir data do acesso].
muito bacana!