por Estudio Flume
Centro de Referência Quebradeiras de Babaçu (texto fornecido pelos autores)
O coco babaçu é a maior atividade extrativista vegetal não madeireira do país e também uma fonte de renda para muitas famílias, apesar de seu declínio constante ao longo dos anos, influenciado principalmente por conflitos territoriais.
Fotografia: Maíra Acayaba
Os Estados do Maranhão, Piauí e Tocantins concentram as maiores extensões de matas onde predominam os babaçus. O principal derivado, o óleo, é extraído das amêndoas, que possui valor comercial para a indústria, entre outros. A extração das amêndoas (de 3 a 5 por coco), é realizada manualmente, de forma caseira e tradicional. Segundo dados da CONAB (Companhia Nacional de Abastecimento) de 2021, o Brasil produziu em 2020, 47.707 toneladas de amêndoas de coco babaçu, sendo o estado do Maranhão responsável por 92,9% da produção. É parte do sustento de grande parcela da população interiorana, extraída, quase exclusivamente, pelas mulheres: as quebradeiras de coco. Estima-se mais de 300 mil quebradeiras espalhadas pelas regiões da Mata dos Cocais. O ofício é passado de geração a geração, desde a coleta dentro da mata à quebra do coco para retirada das amêndoas. As quebradeiras de coco são oficialmente reconhecidas como um dos 28 povos e comunidades tradicionais brasileiras.
Implantação Metropolitana
Porém, o reconhecimento e a garantia, por lei, pelo menos em alguns municípios, ao acesso às terras para a colheita dos cocos são constantemente reprimidos pelos donos dos latifúndios, seja dificultando o acesso, como derrubando as palmeiras para formação de pastos. E a busca pela sobrevivência das quebradeiras se dá por estratégias como o agrupamento das mulheres, através de associações, fortalecendo a representatividade junto às instituições, bem como a dignificação do trabalho, com a tentativa de se agregar valor ao produto através de aplicações alternativas. Além das amêndoas e o seu valor comercial, utiliza-se a farinha do mesocarpo para pães, biscoitos, bolos, e outros alimentos; a casca do coco, como carvão; a própria fumaça, como repelente de insetos; a folha da palmeira, como trançado para cestas, coberturas e esteiras; o palmito, comestível; exemplos que despertam o interesse como objeto de estudos e pesquisa científica na área farmacêutica e na indústria alimentícia.
A região apresenta ainda muitas residências unifamiliares em taipa. O povoado se localiza a 35 km de distância do centro urbano mais próximo, a cidade de Vitória do Mearim. Dependendo da estação do ano, o deslocamento é necessariamente mediante transporte fluvial, uma vez que o povoado de Sumaúma, inserido na bacia hidrográfica do Mearim1, se inunda com as águas do rio Grajaú e o do Igarapé Ipixuna que desaguam no rio Mearim, inviabilizando o transporte por terra durante um período de aproximadamente 3 meses.
Localização e águas
Com vista às condições geográficas, o difícil acesso com materiais construtivos e a leitura das técnicas e recursos próprios da região, optou-se pela utilização do bloco de terra comprimida, composto por solo argiloso, água e uma pequena proporção de cimento, compactado manualmente com prensa mecânica, significando assim em uma releitura da casa de adobe, com manutenção reduzida para o longo prazo da estrutura construída. Esta estrutura autoportante define os espaços de trabalho e permanência.
Fotografia: Maíra Acayaba + Planta de Layout
Uma segunda estrutura independente, de sustentação do telhado, está definida por pilares, vigas e tesouras de madeira local, de recurso florestal autorizado pelo IBAMA. Esta cobertura dupla, oferece melhores condições de conforto térmico, garantindo áreas e construções permanentemente sombreadas.
Fotografia: Maíra Acayaba + Cortes e Elevações
Durante a obra, primeiramente se realizaram as fundações, em segunda instância se realizou a construção do telhado, proporcionando assim uma área protegida no canteiro de obra para fabricação dos tijolos no próprio terreno durante o período de chuvas, para finalmente construir as áreas de trabalho com o material produzido no próprio local. O telhado também incorpora calhas para captação de água de chuva, e a construção como um todo trabalha com sistemas de tratamento de esgoto e águas cinzas mediante a incorporação de fossa séptica biodigestora e círculo de bananeiras. Todas estas técnicas foram discutidas e difundidas na comunidade, incentivando sua replicabilidade a fim de conseguir um impacto ambiental maior que o atingido pelo projeto em si.
Isométrica Explodida
Neste sentido, o projeto do Centro de referência das Quebradeiras de Babaçu significa uma inovação no cotidiano do trabalho do grupo, uma vez que, para o desenvolvimento do projeto, se trabalhou conjuntamente com o grupo numa série de oficinas de desenho coletivo, onde a equipe de Estúdio Flume aprendeu sobre o processo produtivo do grupo, para assim juntos desenhar espaços que buscam a otimização dos usos, onde os diversos programas e momentos das atividades produtivas se organizam mediante uma circulação dinâmica e fluída.
Fotografia: Noelia Monteiro
Nessas oficinas de desenho coletivo, a escuta e a partilha são o primeiro passo para definição de diagramas e fluxogramas dos processos de produção, uma tradução espacial e temporal das técnicas ancestrais de trabalho. As maquetes de processo são uma ferramenta chave para o diálogo e revisão de projeto, assim como para o processo de construção, onde o dispositivo guia algumas das orientações gerais. A equipe de obra incorpora saberes e modos de fazer, que também significam revisões de projeto durante o processo construtivo. Ao assumir diversas formas de nos aproximar às soluções, seja mediante imagens, diálogos e especulações para a produção dos espaços, organizando os usos e as hierarquias deles no conjunto construído, a arquitetura finalmente funciona como um meio para proporcionar igualdade e proporcionar liberdade no futuro do projeto e na sua flexibilidade para se adaptar a novas demandas.
1 – Universidade Estadual do Maranhão e Núcleo geoambiental, «Regiões Hidrográficas do Maranhão», 2009..
Sobre o projeto: Entrevista exclusiva para MDC.
por Noelia Monteiro (N.M.)
MDC – Como você contextualiza essa obra no conjunto de toda a sua produção?
N.M. – O Centro de Referência das Quebradeiras de Babaçu consolidou um método de aproximação ao projeto em desenvolvimento junto à comunidade. Desde a decisão do programa e as atividades que poderia abrigar até o fluxo de circulação interno e como cada parte faz sentido no todo. Elementos fixos próprios do mobiliário foram desenhados nas oficinas de projeto junto às mulheres pensando na própria ergonomia e a forma tradicional de trabalhar.
MDC – Como foi o mecanismo de contratação do projeto?
N.M. – Já tínhamos realizado diversos projetos e assessorias com grupos de quebradeiras no interior do Maranhão, portanto a ideia de dedicar um espaço para o encontro, a troca e a produção foi se consolidando com os anos, sendo assim uma contratação direta.
MDC – Como foi a fase de concepção do projeto? Houve grandes inflexões conceituais? Você destacaria algum momento significativo do processo?
N.M. – Inicialmente o projeto tinha sido pensado para outro terreno, de proporções quadradas, e em outra comunidade. Quando o grupo conseguiu adquirir o terreno do atual projeto, as proporções de um terreno estreito e profundo nos levaram para um novo partido, trabalhando com uma grande cobertura retilínea e modular, e um único corredor que distribuísse em forma de pente para os diferentes espaços do programa.
MDC – Nas etapas de desenvolvimento executivo e elaboração de projetos de engenharia houve participação ativa dos autores? Houve variações de projeto decorrentes da interlocução com esses outros atores que modificaram as soluções originais? Se sim, pode comentar as mais importantes?
N.M. – Na etapa do executivo, o projeto de estruturas trouxe variações ao projeto definido no anteprojeto, de modo a simplificá-lo uma vez que o material predominante da obra, que seria o tijolo de solo compactado, gerava muitas dúvidas para os engenheiros envolvidos de como se comportaria no decorrer do tempo.
MDC – Os autores dos projetos tiveram participação no processo de construção/implementação da obra? Se sim, quais os momentos decisivos dessa participação?
N.M. – O escritório realizou o gerenciamento e administração da obra. Houve um momento chave na organização do cronograma de obra, que foi o de identificar que devido ao período de intensas chuvas que a construção atravessaria, seria necessário pensar a ordem do sistema construtivo de um modo diferente. Assim, após realizar as fundações, foi instalada a estrutura de madeira que daria sustentação à cobertura principal. Com a cobertura pronta, iniciou-se a fabricação dos tijolos in-loco para finalmente construir o projeto. Desta forma, foi possível dar continuidade a obra, mesmo no período de chuvas.
MDC – Você destacaria algum fato relevante da vida do edifício/espaço livre após a sua construção?
N.M. – Mesmo com caráter de projeto dedicado a produção de alimentos e geração de renda, a possibilidade de construir num povoado sem presença de equipamentos culturais nem espaços públicos, como praças com brinquedos, adicionou outras camadas ao projeto, como a possibilidade de se tornar também o espaço de encontro, não só das quebradeiras, como também de filhos e netos.
MDC – Se esse mesmo problema de projeto chegasse hoje a suas mãos, faria algo diferente?
N.M. – Pensando nos programas não previstos, como o uso por parte de crianças e adolescentes como lugar de encontro, receber a demanda do projeto no atual contexto poderia ser trabalhada em conjunto com o grupo, destinando setores e espaços específicos do terreno para o lugar de brincar. Não para propor um controle sobre o encontro da comunidade, mas sim para promover uma convivência com atividades que se relacionam com um processo controlado da produção de alimentos. Esta convivência poderia ser construída desde a concepção do projeto para que pudesse ser amadurecida na apropriação e uso da obra construída.
MDC – Como você contextualiza essa obra no panorama da arquitetura contemporânea do seu país?
N.M. – O Centro de Referência das Quebradeiras de Babaçu representa a realização de um projeto concebido desde as ideias preliminares junto com a comunidade. Ao mesmo tempo faz uma releitura dos materiais utilizados nas construções locais e se propõe a fortalecer a presença de um grupo tradicional que atravessa conflitos de território. Neste contexto, entendemos que assim como no Brasil, a nível regional na América Latina é possível criar uma rede de projetos com foco no fortalecimento de comunidades tradicionais.
MDC – Há algo relativo ao projeto e ao processo que gostaria de acrescentar e que não foi contemplado pelas perguntas anteriores?
N.M. – A possibilidade de acompanhar a obra de perto permitiu incorporar saberes locais do empreiteiro, do carpinteiro, do serralheiro, que foram aprimorando as ideias defendidas no papel. O excedente de material produzido como tijolos, ou mesmo madeira utilizada durante a obra, deram lugar à produção de bancos para o descanso e o encontro em diferentes pontos do projeto. A concretização destes detalhes só foi possível pela frequência e presença no canteiro de obra.
projeto executivo
EXECUTIVO COMPLETO
12 pranchas (pdf).
5,30mb
COMPLEMENTARES COMPLETO
10 pranchas (pdf).
3,64mb
localização e ficha técnica do projeto
Local: Sumaúma, Vitória do Mearim, MA
Ano de projeto: 2021
Ano de execução e conclusão da obra: 2022
Área do terreno: 483 m²
Área construída (cobertura): 275 m²
Autores: Noelia Monteiro e Christian Teshirogi
Colaboração: Marina Lickel
Arquitetura: Estudio Flume
Luminotécnico: Ana Lúcia Hizo
Construtor: Miguel Noleto Machado
Fotos: Maíra Acayaba e Noelia Monteiro
Contato: info@estudioflume.com
galeria
colaboração editorial
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MONTEIRO, Noelia. TESHIROGI, Christian. “Centro de Referência Quebradeiras de Babaçu”. MDC: Mínimo Denominador Comum, Belo Horizonte, s.n., ago-2023. Disponível em //www.28ers.com/2023/08/11/centro-de-referencia-quebradeiras-de-babacu/ . Acesso em: [incluir data do acesso].
belo trabalho!