Por Architectus S/S
Parque Rachel de Queiroz (texto fornecido pelos autores)
Nas primeiras horas da manhã já começa o movimento. Em sua maioria, frequentadores com roupas de ginástica escolhem começar o dia praticando alguma atividade física da sua preferência. Caminhada, corrida, academia ao ar livre, bicicleta, futebol e vôlei são apenas algumas das opções disponíveis. Tudo isso às margens de 9 lagoas interconectadas, as wetlands. Esse é apenas um breve resumo do que se pode encontrar na 1° etapa do Parque Rachel de Queiroz.
Fotografia: Joana França
Com 10 km de extensão e cerca de 203 hectares, quando finalizado, o Parque será o 2° maior de Fortaleza – CE. Dada a sua grande extensão, o espaço foi dividido em 19 trechos, dos quais 6 já foram executados. O conceito utilizado para a concepção do projeto foi o de Parque Linear, utilizando o sistema viário existente como conexão entre as áreas verdes que cortam diretamente 8 bairros na zona Oeste da capital cearense.
Fotografia: Joana França
O sexto trecho, recém-inaugurado, resgata uma área degradada que há muitos anos era motivo de preocupação para a população do bairro Presidente Kennedy. O local, maior área disponível para intervenção do Parque, era um grande terreno baldio, tomado pelo depósito de lixo irregular e esgoto clandestino. Essa situação contribuía para agravar a poluição do Riacho Cachoeirinha, recurso hídrico que corta o terreno e que estrutura a maior área do parque. Além disso, devido ao intenso processo de adensamento dessa região da cidade e a consequente diminuição das áreas permeáveis no entorno, acarretou alagamentos frequentes no terreno pela sobrecarga no sistema de escoamento das águas pluviais.
Por se tratar de uma área de preservação municipal alagada, o projeto do Parque Rachel de Queiroz adotou a drenagem como eixo estruturador. Para melhorar a qualidade da água do Riacho Cachoeirinha, bem como criar um sistema de amortecimento de cheias foi empregada a técnica das wetlands.
Croqui Wetlands
Detalhes Aduelas
Após estudos hidrológicos, foram propostas 9 lagoas interconectadas que realizam um processo de filtragem natural das águas do Riacho e de galerias pluviais, através de decantação e fitorremediação. Esse processo é realizado por microorganismos que ficam fixados tanto na superfície do solo, quanto nas raízes das plantas aquáticas das lagoas.
Masterplan com fluxo hídrico
Fotografias: Joana França
Ou seja, além de marcarem o ambiente do Parque através do seu potencial paisagístico, as wetlands são uma estratégia fundamental para a recuperação ambiental da área. Aliada a isso, a implantação de áreas verdes, que envolveu obras de terraplanagem e o plantio de cerca de 600 árvores, foi determinante para melhoria das condições de desenvolvimento da fauna e flora locais. Após a inauguração desse trecho do Parque, os frequentadores já se acostumaram a ver diferentes espécies do ecossistema nativo em meio a paisagem urbana.
Fotografias: Joana França
Os caminhos entre as lagoas conduzem os frequentadores para áreas de permanência estruturadas com diversos equipamentos de cultura, esporte e lazer. Anfiteatro, cachorródromo, quadras poliesportivas, playgrounds, espiribol, espaço leitura, academia ao ar livre são apenas algumas das atividades disponíveis. Uma pista bidirecional que circunda todo o perímetro do Parque garante um espaço seguro e apropriado para caminhadas, corridas e passeios de bicicleta. Desde o início do projeto, a diversidade de usos proporcionada pelo programa de necessidades do Parque Rachel de Queiroz foi pensada para incluir e incentivar a apropriação do espaço pela população, entendendo o uso da área como componente fundamental para a sustentabilidade ambiental, evitando que volte a se transformar em local de depósito clandestino de lixo, entulho ou esgoto.
Fotografias: Joana França
Por se tratar de uma área extensa, a conexão entre os espaços do Parque era essencial para que o mesmo fosse bem utilizado como um todo. Pensando nisso, foram propostas duas passarelas metálicas para que o Riacho Cachoeirinha não se tornasse uma barreira física. Executadas com perfis tubulares em aço e piso em concreto, as passarelas garantem fácil acesso, principalmente, aos frequentadores que chegam pela R. Licurgo Montenegro.
O projeto do mobiliário urbano do Parque levou em consideração dois princípios: sustentabilidade e resistência. Os brinquedos do playground, espaço PET e caramanchões foram executados com peças de eucalipto tratado. Já os bancos possuem assentos em madeira biossintética e estrutura de concreto.
Fotografias: Joana França
Além de todo o ambiente construído do Parque Rachel de Queiroz, a identidade visual também fez parte do projeto desenvolvido pela Architectus S/S. Desde a logo que evidencia as wetlands como protagonistas até a sinalização com placas e totens que não só direcionam, como educam e informam. Tudo isso para qualificar esse espaço público em diferentes níveis.
É importante contextualizar a área em que o projeto foi implantado: zona Oeste de Fortaleza, marcada por bairros populares que tiveram um alto crescimento populacional nos últimos anos. A região, mesmo detentora de grandes áreas livres, era carente de espaços públicos qualificados até a inauguração do Parque Rachel de Queiroz. Todos esses fatores explicam a rápida apropriação pela comunidade do entorno, inclusive impulsionando o comércio tanto formal, quanto informal na região.
Fotografia: Joana França
Poucos meses após a inauguração do Parque Rachel de Queiroz, já é difícil lembrar do terreno que trazia tantos problemas para a população. A transformação em um espaço público movimentado, vivo, pulsante, foi rápida. Urbanidade aplicada no melhor sentido da palavra.
Sobre o projeto: Entrevista exclusiva para MDC.
por Elton Timbó (E.T.) e Gerson Amaral (G.A.)
MDC – Como vocês contextualizam essa obra no conjunto de toda a sua produção?
E.T. – Nós (Architectus) atuamos há 20 anos no mercado de projetos públicos, nesse tempo tivemos a oportunidade de projetar uma vasta gama de temas, seja na área da arquitetura, do urbanismo, do paisagismo e disciplinas de engenharia.
O Parque Rachel de Queiroz, por sua dimensão e interação direta na malha urbana de Fortaleza, impactando 14 bairros, nos trouxe muitos desafios e ao mesmo tempo a oportunidade de adotar técnicas e conhecimentos diversos adquiridos nesses 20 anos de intensa atividade profissional.
G.A. – O Parque Rachel de Queiroz, pela sua grande escala, complexidade e impacto social, foi uma grande oportunidade de propor soluções projetuais que já haviam sido testadas em projetos anteriores, em menor escala, viabilizando a aplicação de princípios de requalificação urbana, ecologia e sustentabilidade que até então foram inéditos para a capital cearense nessa escala de intervenção.
MDC – Como foi o mecanismo de contratação do projeto?
E.T. – Licitação. Através dessa concorrência pública ganhamos o direito de projetar os 203ha do Parque Linear Rachel de Queiroz. O projeto compreende um Parque Linear de 19 trechos, destes 5 trechos foram executados até o momento. O projeto foco desse artigo compreende o último trecho inaugurado: trecho 6.
MDC – Como foi a fase de concepção do projeto? Houve grandes inflexões conceituais? Vocês destacariam algum momento significativo do processo?
E.T. – Após uma demorada fase de Levantamento Topográfico Cadastral, vimos que as conexões urbanas ainda existiam e a partir daí os conceitos foram firmados. O Parque Linear seria possível desde que houvesse algumas desapropriações e remanejamentos pontuais. Além das conexões, havia problemas com alagamentos e necessidade de melhorias na qualidade das águas residuais, além de espaços qualificados ao esporte, lazer e contemplação.
G.A. – O sistema de wetland concebido para alguns trechos do parque surgiu de uma análise crítica feita de outras intervenções feitas em corpos hídricos na cidade em contextos ambientais e urbanos semelhantes. O projeto do Parque Rachel de Queiroz propôs uma nova forma a lidar com a dinâmica do Riacho Cachoeirinha (que corta o trecho 6) com uma solução de infraestrutura que reconfigura a paisagem a partir de sua dinâmica natural, viabilizando uma recuperação ambiental alinhada com as características e usos urbanos.
MDC – Nas etapas de desenvolvimento executivo e elaboração de projetos de engenharia houve participação ativa dos autores?
E.T. – Na concepção dos projetos da wetlands tivemos a participação ativa de engenheiros das áreas de hidráulica, terraplenagem e estruturas de concreto; estes desenvolveram os complementos necessários que tornaram realidade os espaços e soluções projetadas por nós.
G.A. – A concepção do sistema hidráulico das wetlands foi todo desenvolvido pela equipe de urbanismo e paisagismo. O pré-dimensionamento do sistema foi avaliado e submetido ao cálculo hidráulico que apontou os ajustes necessários de vazão e níveis, os quais foram devidamente compatibilizados pelos autores.
MDC – Houve variações de projeto decorrentes da interlocução com esses outros atores que modificaram as soluções originais? Se sim, podem comentar as mais importantes?
G.A. – Houve uma certa resistência, desde o princípio, na adoção do sistema de wetland pela falta de uma referência nacional de sistema semelhante. Ao longo do processo de desenvolvimento de projeto diversos surgiram propostas de modificação do sistema para soluções mais tradicionais como barragens, piscinões em concreto ou impermeabilização das margens das lagoas, mas todas foram descartadas dando prioridade a soluções mais naturais.
A pedido da fiscalização do projeto por parte da Prefeitura Municipal, toda a proposta de urbanismo teve suas áreas pavimentadas reduzidas ao mínimo necessário para atender a legislação ambiental vigente. Igualmente foram reduzidas consideravelmente as propostas de construção de quiosques, guaritas e equipamentos que ocasionassem a impermeabilização do solo.
MDC – Os autores dos projetos tiveram participação no processo de construção/implementação da obra?
E.T. – Sim, felizmente o cliente (Prefeitura Municipal de Fortaleza) sempre pedia nossa participação nas principais tomadas de decisão na obra, desde a modificação de especificações de materiais a determinação de níveis e vazões a serem adotadas nas lagoas. Lutamos muito para que tudo se mantivesse conforme projetado.
G.A. – O acompanhamento do projeto foi fundamental para assegurar a manutenção do conceito do sistema, fazendo com que os ajustes necessários durante as obras mantivessem os princípios que balizaram as soluções.
MDC – Vocês destacariam algum fato relevante da vida do edifício/espaço livre após a sua construção?
E.T. – Vários fatos: melhorias reais na qualidade das águas, recomposição da flora e fauna, garantia de mobilidade, permeabilidade e acessibilidade, impacto positivo na cultura local, no esporte e lazer, além de um intenso uso da população. Conseguiu-se dar o uso adequado a essas áreas de fundo de vale urbanas, fazendo nascer a sensação de pertencimento e consequente cuidado por parte da população local.
G.A. – A apropriação da população foi imediata, transformando uma área antes abandonada e degradada em uma nova centralidade para toda uma região da cidade. Poucos meses após sua inauguração o espaço já passou a figurar como um dos cartões postais da capital, atraindo visitantes de toda a cidade e região metropolitana.
MDC – Se esse mesmo problema de projeto chegasse hoje a suas mãos, fariam algo diferente?
G.A.– Conceitualmente os princípios adotados seriam os mesmos. Eventualmente seriam feitas modificações em detalhes construtivos específicos como mobiliário urbano e nos dispositivos de conexão entre as lagoas.
MDC – Como vocês contextualizam essa obra no panorama da arquitetura contemporânea do seu país?
E.T. – Ainda são poucos os projetos no Brasil e no mundo que abordam o manejo sustentável das águas superficiais aliado aos aspectos urbanos e comunitários. O projeto do Parque Raquel de Queiroz mostra que é possível avançarmos com esse olhar inovador da arquitetura e do urbanismo.
G.A. – Percebemos que o trecho 06 do Parque Rachel de Queiroz tem sido frequentemente citado, em sites e publicações especializadas, como um bom exemplo de sustentabilidade urbana. O contexto socioeconômico e ambiental onde se insere parece ter sido o grande diferencial dentro da produção contemporânea, ao se tornar um exemplo exitoso de aplicação dos conceitos de Soluções Baseadas na Natureza (SBN) para a recuperação ambiental de um recurso hídrico associado a requalificação urbana em zona pobre e em um país tropical.
MDC – Há algo relativo ao projeto e ao processo que gostariam de acrescentar e que não foi contemplado pelas perguntas anteriores?
E.T. – O Projeto do Parque Rachel de Queiroz trata-se de uma grande Requalificação Urbana com extensão de 10Km atravessando diversos bairros de ocupação consolidada e densa da capital cearense. Todos os 19 trechos do Parque margeiam recursos hídricos e áreas verdes plenamente possíveis de interligações. Ao adotar a drenagem como eixo estruturador para o projeto, viu-se que esses recursos hídricos tinham alta carga de matéria orgânica, por isso a adoção da técnica de wetlands (alagados construídos) com uso de margens vegetadas para melhoria da qualidade dessas águas e valorização da fauna e flora locais. O conjunto desses alagados faz também o importante papel de lagoas de retenção na ocorrência de enxurradas acabando com as inundações que constantemente aconteciam.
Quando executado em sua completude, o Parque Rachel de Queiroz será o segundo maior parque da cidade de Fortaleza.
projeto executivo
EXECUTIVO COMPLETO
8 pranchas (pdf).
30,52mb
localização e ficha técnica do projeto
Local: Fortaleza – CE
Ano de projeto: 2022
Área total do parque: 2.030.000,00 m²
Área total da primeira etapa (trecho 6, 1ª etapa): 90.969,41 m²
Arquitetura, urbanismo e paisagismo: Architectus – Elton Timbó, Mariana Furlani, Alexandre Landim, Ricardo Sabóia, Gerson Amaral, Jaqueline Martinez (autores); Tatiana Rocha, Fernanda Frota, Carolina Vieira, Vitor Alencar, Jairo Diniz, Paulo André, Flaviane Rodrigues (equipe)
Construtora: Athos Construções
Estrutura metálica: Eng. Francisco Holanda
Estrutura de concreto: Eng. Juarez Santiago
Instalações: Eng. Américo Farias, Eng. Osvaldo Holanda, Eng. Allisson dos Santos, Eugênio Mesquita, Erasmo Carlos
Orçamento: Lyncoln Freitas, Carmilson Andrade
Consultoria ambiental: Gabriel Theophilo (Eng. Agrônomo), Ricardo Augusto (Geólogo), Juarez Santiago (Eng. Civil)
Contratante: prefeitura municipal de Fortaleza
Fotos: Joana França
Contato: comercial@architectus.com.br
galeria
colaboração editorial
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TIMBÓ, Elton. FURLANI, Mariana. LANDIM, Alexandre. SABOIA, Ricardo. AMARAL, Gerson. MARTINEZ, Jaqueline. “Parque Rachel de Queiroz”. MDC: Mínimo Denominador Comum, Belo Horizonte, s.n., set-2023. Disponível em //www.28ers.com/2023/09/13/parque-rachel-de-queiroz. Acesso em: [incluir data do acesso].