Por VÃO
Sede para uma Fábrica de Blocos (texto fornecido pelos autores)
12.000 blocos. 75m² de área útil. 75m² de paredes.
Fotografias: VÃO (fotos da obra) + Rafaela Netto
A urgência de abertura do espaço, o baixo orçamento disponível e o terreno alugado eram fatores que impediam uma construção convencional para a sede desta fábrica de blocos de concreto em Avaré, interior de São Paulo. Diante deste contexto, os sócios passaram a cogitar a compra de um container, contudo, não nos parecia coerente que o futuro espaço de escritório e showroom da fábrica não empregasse o material por ela produzido.
Fotografias: Rafaela Netto + VÃO (fotos da obra)
Foi durante uma das visitas ao galpão, observando o sistema de armazenamento e transporte dos blocos em pilhas apoiadas sobre pallets, que ocorreu a ideia de construir sem a utilização de argamassa. Desta forma a obra seria transformada em uma rápida montagem e o material poderia ser totalmente reutilizado no caso de uma mudança de endereço.
Fotografias: Rafaela Netto
Como a quantidade de blocos não era um problema, a estabilidade seria garantida pelo aumento significativo da espessura das paredes, transformando-as em verdadeiras muralhas de blocos aparelhados1.
Fotografias: VÃO
Diagrama de organização dos blocos + possibilidades de montagem/desmontagem
A partir de então as relações entre altura, peso e superfície de contato dos empilhamentos passaram a ser exploradas tanto no projeto como em protótipos no canteiro de obra, resultando em duas configurações de aparelhos: paredes longitudinais com 0,6m de largura e paredes transversais com 1,20m de largura.
Planta + Sequência construtiva
De certo modo, o sistema construtivo desenvolvido faz uma alusão às antigas construções megalíticas, antecessoras à invenção de substâncias aglutinadoras, que tinham a força da gravidade como principal elemento estabilizador. Para nivelar e travar verticalmente essas muralhas a lógica do sistema observado na visita foi reproduzida na obra, substituindo os pallets por lajes a cada seis fiadas.
Lajes a cada seis fiadas
Fotografias: Rafaela Netto
Tanto nas lajes intermediárias quanto na cobertura, os trilhos pré-moldados foram justapostos sem a colocação das usuais lajotas cerâmicas, ou seja, o espaço de ar que seria gerado por elas foi preenchido pelo concreto, aumentando significativamente o peso das lajes a fim de auxiliar no travamento das largas muralhas de blocos.
Fotografias: Rafaela Netto + Elevações frontal e lateral + Cortes longitudinal e transversal
1- Aparelhos são formas de encaixes dos blocos intercalados em sentidos diferentes para obter uma boa amarração das paredes.
Sobre o projeto: Entrevista exclusiva para MDC.
por Anna Juni, Enk te Winkel, Gustavo Delonero (VÃO)
MDC – Como vocês contextualizam essa obra no conjunto de toda a sua produção?
VÃO – Quando projetamos raramente pensamos no fim, ou na não existência da construção que desejamos realizar. A Sede para uma Fábrica de Blocos se difere por ser a única obra não-efêmera de nossa produção que projeta um ciclo, ou seja, que o pensamento considera tanto a construção quanto a sua iminente desmontagem, assim como a reutilização do material quando o terreno não for mais alugado pelos clientes.
Outra consideração sobre essa obra é que talvez ela seja o exemplo mais claro e direto a ser dado quando nos questionam sobre como o contato com as artes plásticas reverbera em nosso trabalho de arquitetura.
As aproximações com artistas, através do trabalho de assistência, trouxeram para nós uma entrega conceitual ao modo de pensar o projeto; uma abertura interpretativa, que suscita questões análogas em outros processos de uma natureza que não a da nossa formação. Não fosse essa influência, talvez não tivéssemos nos afastado de algumas automatizações do pensamento acerca do uso dos materiais, e talvez não nos tivéssemos proposto ao exercício de unir blocos de concreto sem qualquer substância aglutinadora.
Um segundo olhar para os blocos, sob uma outra perspectiva construtiva, resultou em uma experimentação que expande a convencionalidade do uso do material no campo da arquitetura.
MDC – Como foi o mecanismo de contratação do projeto?
VÃO – A fábrica de blocos era recém-inaugurada em Avaré, interior de São Paulo, quando uma pequena incorporadora local nos encomendou o desenvolvimento de um projeto de uma casa para investimento.
Optamos por realizar esse projeto, chamado de Casa sem dono nº 02, em blocos de concreto aparente – o que era, e ainda é, bastante inusual para a cidade. Os sócios da fábrica acabaram por visitar a obra e ficaram felizes de ver o projeto que evidenciava o material em sua forma natural, sem reboco. Logo após a visita eles nos contactaram com a proposta de realizar a sede de um escritório e showroom para a sua fábrica.
MDC – Como foi a fase de concepção do projeto? Houve grandes inflexões conceituais? Vocês destacariam algum momento significativo do processo?
VÃO – Como já mencionado no memorial apresentamos dois projetos nesse processo, sendo o primeiro deles uma construção tradicional em blocos de concreto aparente. Essa versão foi vetada pela necessidade de rápida execução, pelo baixo orçamento disponível e o problema de investir uma grande quantia em um terreno alugado.
Apesar de desapontados com a reunião, e com a resolução dos clientes de comprar um container para realizar a sede, não desistimos do projeto. Assim surgiu a ideia de construir sem argamassa, utilizando apenas o peso do material e a força da gravidade como elementos estruturantes. Diante a garantia de uma rápida montagem, e da reutilização de praticamente todo o material no caso de uma mudança futura, não houve uma segunda negativa.
Essa grande e forçada inflexão conceitual foi o que nos levou ao projeto tal qual ele é hoje. Todavia, não fossem as adversidades de tempo e orçamento muito provavelmente teríamos construído um bom, porém convencional, projeto de blocos de concreto aparentes, sem a inventividade estrutural que nos levou à solução final.
MDC – Nas etapas de desenvolvimento executivo e elaboração de projetos de engenharia houve participação ativa dos autores? Houve variações de projeto decorrentes da interlocução com esses outros atores que modificaram as soluções originais? Se sim, podem comentar as mais importantes?
VÃO – A estrutura da Sede para uma Fábrica de Blocos foi desenvolvida de maneira muito empírica por nós, pois não havia orçamento disponível para a contratação de um projeto de engenharia.
Fizemos apenas uma reunião informal de consultoria com um parceiro engenheiro a partir da ideia do empilhamento e aparelhamento dos blocos. Na conversa nos asseguramos que esse seria um caminho possível e, a partir de então, começamos a realizar alguns ensaios no local da obra. Foi através desses ensaios em escala 1:1, com o próprio material, que chegamos nas configurações finais das paredes com 0,6 e 1,2m de espessura.
Podemos dizer que na Sede para uma Fábrica de Blocos a criação de um novo sistema estrutural, ou de uma maneira não-convencional de empregar o material, antecedeu e norteou o desenvolvimento da arquitetura.
Todavia, vale destacar que buscamos sempre uma confluência entre o pensamento estrutural e espacial ao longo dos nossos processos. Isto é, há uma atenção em eleger tecnologias de construção que estejam conectadas intrinsicamente à arquitetura, construindo conjuntamente as suas espacialidades. E a cada trabalho nos mantemos atentos não apenas às viabilizações técnicas de estruturar os projetos, mas também à economia de meios e recursos, fazendo essas escolhas com discernimento e coerência em relação aos seus contextos.
MDC – Os autores dos projetos tiveram participação no processo de construção/implementação da obra? Se sim, quais os momentos decisivos dessa participação?
VÃO – Como levantado na pergunta anterior, as investigações acerca de altura, espessura, peso e estabilidade dos empilhamentos foram elaboradas não somente na fase de projeto como também no canteiro de obra.
Para além disso acreditamos que o processo de participação e acompanhamento da equipe de arquitetura na obra é imprescindível para o bom andamento da construção. Esse é o momento no qual verificamos as materializações das ideias, tiramos dúvidas, e principalmente, um dos momentos de maior aprendizagem com as equipes. Não raro alteramos os projetos a partir de questões e sugestões colocadas pelos construtores e fornecedores no decorrer dos processos.
Na Sede para uma Fábrica de Blocos não foi diferente, nos fizemos presentes em todas as fases da obra. O que a difere das demais, no entanto, é que essa foi uma obra muito rápida e consequentemente com muito menos revisões em momentos decisivos.
MDC – Vocês destacariam algum fato relevante da vida do edifício/espaço livre após a sua construção?
VÃO – Ao voltar ao local, após alguns anos da finalização de sua construção, tivemos uma grata surpresa: em um movimento entrópico, as heras dos canteiros externos invadiram o espaço interno, tomando todo o teto e parte das muralhas. Isso não havia sido planejado. Imaginávamos, é claro, que elas fossem crescer nas fachadas externas, mas nunca que fossem encontrar nos pequenos vãos entre os blocos, onde a argamassa encontra-se ausente, um caminho para essa ocupação inesperada do lugar. Felizmente essa surpresa foi celebrada pelos clientes e as heras foram mantidas no convívio espacial.
MDC – Se esse mesmo problema de projeto chegasse hoje a suas mãos, fariam algo diferente?
VÃO – Não acreditamos em soluções ideais e encerradas ou em caminhos exclusivamente certos ou errados – nossa produção difere-se muito entre si, de maneira geral.
As ideias que constroem cada projeto encontram-se atreladas a um recorte temporal de nossas vidas e consequentemente, de nossos interesses e pesquisas naquele momento específico. E quando construímos estamos materializando as ideias e pesquisas que alimentaram esse tempo.
Dito isso, talvez poderíamos pensar que quanto maior a distância temporal maior seria a distância entre o que fizemos e o que faríamos. Contudo, o frescor da finalização de uma obra também pode acentuar as vontades de mudança na concretização de ideias que não funcionaram como o esperado.
Olhando para a Sede para uma Fábrica de Blocos hoje consideramos apropriada a maneira como conceitualmente respondemos às questões de tempo e custo que culminaram em um novo sistema construtivo. Nesse sentido é provável que seguiríamos a mesma solução conceitual-estrutural, mas talvez mudássemos algumas das soluções técnicas, certamente influenciados pelo contexto atual de nossa pesquisa e pelos aprendizados que tivemos desde então.
MDC – Como vocês contextualizam essa obra no panorama da arquitetura contemporânea do seu país?
VÃO – Entendemos todo projeto como uma pequena e eventual oportunidade de contribuir para o debate e o fazer coletivo da arquitetura. Acreditamos que a maior contribuição da Sede para uma Fábrica de Blocos para esse debate seja o sistema construtivo desenvolvido que, por não empregar argamassa, possibilita o reuso dos blocos de concreto.
Apesar desse sistema ter sido desenvolvido especificamente para essa obra, ele se insere em um debate urgente, contemporâneo e global que é projetar pensando nos ciclos das obras e os consequentes destinos dos seus materiais.
Para além disso essa obra versa sobre como o que a princípio é um empecilho para o desenvolvimento do projeto pode vir a se transformar em uma oportunidade de lançar um segundo olhar para aquilo que já é conhecido, e a partir dele abrir outros caminhos possíveis.
MDC – Há algo relativo ao projeto e ao processo que gostariam de acrescentar e que não foi contemplado pelas perguntas anteriores?
VÃO – Apesar de toda simplicidade formal, do programa comercial e de pequena escala, a Sede para uma Fábrica de Blocos tem sido um dos projetos mais importantes de nossa trajetória. Dentre as participações em exposições e prêmios que ele nos proporcionou podemos destacar o Prêmio Début da Trienal de Arquitetura de Lisboa de 2022 intitulada Terra.
O eixo temático no qual nosso projeto foi inserido chamava-se Ciclos e discutia como a arquitetura pode repensar e atuar efetivamente nos fluxos cíclicos e nos processos de transformação e redistribuição da matéria.
Vivenciar essa Trienal foi um momento muito transformador para nós. Seis anos após a conclusão do projeto tivemos a oportunidade de revisitá-lo conceitualmente através de um debate coletivo, estabelecido pela curadoria e pelos trabalhos de nossos colegas.
Ao citar esse evento não temos o intuito de evidenciar o prêmio, mas sim de perceber como as ideias podem seguir reverberando e proporcionando novas aprendizagens dentro de um contexto coletivo.
projeto executivo
EXECUTIVO COMPLETO
3 pranchas (pdf).
1,72mb
ficha técnica do projeto
Local: Avaré – SP
Ano de projeto: 2015
Ano de conclusão: 2016
Área construída: 150m²
Autores: Anna Juni, Enk te Winkel e Gustavo Delonero
Colaboração: André Nunes
Consultoria Estrutural: Reyolando Brasil (consultoria estrutural)
Construção: Equipe Blocos Tróia
Fotos: Vão (processo); Rafaela Netto (finais)
Contato: contato@vao.28ers.com
Premiações:
Integrante do Prêmio de Arquitetura Akzonobel Instituto Tomie Ohtake (2018);
1º Prêmio – Premiação IAB-SP 75 anos – Categoria Industrial (2018);
Prêmio Début – Trienal de Arquitetura de Lisboa (2022).
galeria
colaboração editorial
deseja citar esse post?
JUNI, Ana. WINKEL, Enk te. DELONERO, Gustavo. “Sede para uma Fábrica de Blocos”. MDC: Mínimo Denominador Comum, Belo Horizonte, s.n., dez-2023. Disponível em //www.28ers.com/2023/12/13/sede-para-uma-fabrica-de-blocos. Acesso em: [incluir data do acesso].