Por Terra + Tuma
Casa Vila Matilde (texto de Francesco Perrotta-Bosch | 2015)
É preciso avisar de antemão: este não é um projeto feito por caridade. Nem se encaixa a definição de habitação social. De fato, a história da casa na Vila Matilde restitui algo de elementar à arquitetura.
Fotografia: Terra e Tuma
Um então distante conhecido de Danilo Terra consultou o arquiteto sobre a possibilidade de reformar a casa onde sua mãe residia há 25 anos. Morava em um trecho do bairro de Vila Matilde, na zona Leste de São Paulo, oriundo de um antigo loteamento – uma vizinhança repleta de casas modestas, mas atendidas pelos serviços básicos de infraestrutura. Naquele ano de 2011, mãe e filho tinham dois cenários em mente: um projeto de reforma da casa ou sua venda para a compra de algum apartamento.
Situação
Danilo e Pedro Tuma, seu sócio no escritório, foram visitar a residência existente e constataram uma complicada situação: incontáveis rachaduras e infiltrações nas paredes; ampliações feitas ao longo dos anos sem qualquer ordenamento; faltavam janelas e aberturas que permitissem a entrada de ventilação e iluminação naturais nos ambientes internos. Era inviável o reaproveitamento da estrutura que lá havia. Embora insalubre, a senhora de 74 anos não fazia esforço para sair da velha casa. Por mais que o primogênito reconhecesse as condições ruins de moradia da matriarca, também percebia o quão negativo seria tirá-la da vizinhança onde há décadas estava estabelecida sua rotina.
Fotografias: Terra e Tuma
Assim, decidiram demolir a casa existente para edificar uma nova no mesmo terreno. As economias guardadas por esta senhora nas décadas de prestação de serviços domésticos eram na ordem de 100 mil reais. “Seria possível com este valor construir uma casa térrea para a mãe?”, questionava o filho aos arquitetos. “Tem que ser possível”, pensou a dupla do escritório Terra e Tuma. Ao apresentar seus projetos anteriores de residências, suas referências e sua ideia de arquitetura, eles esclareceram aos clientes que o limite para o orçamento era baixo, mas era viável.
Fotografia: Terra e Tuma
Nesse momento, é necessário se colocar na posição desta mãe e filho. Afinal, eles estavam prestes a pôr todo o dinheiro poupado em uma vida inteira à disposição de um projeto arquitetônico. Não é um ato muito comum para pessoas de uma classe social mais humilde no Brasil, país cujo senso comum põe o bom projeto de arquitetura como um benefício para quem tem dinheiro sobrando. Pondo-se no lugar dos arquitetos, gerenciar os escassos recursos de uma pessoa para materializá-los em sua nova moradia era uma responsabilidade grande.
Cabe também acrescentar que este não é um caso de fé à profissão. Provavelmente, dona Dalva não conhece Le Corbusier. Dona Dalva não sabe dos benefícios da planta livre, nem dos outros quatros pontos para a arquitetura moderna. Dona Dalva não deve estar ciente da importância
gregária do salão caramelo da FAUUSP. Pelo processo de construção, Dona Dalva não deu indícios de se importar com as condições operárias no canteiro de obras. Dona Dalva não se encanta com os hightechs, desconstrutivistas, metabolistas ou sustentáveis. Dona Dalva não aprendeu com Las Vegas. Ou seja, dona Dalva passa ao largo da intelligentsia arquitetônica, mas mesmo assim, por algum motivo, eles apostaram todas as fichas na arquitetura.
Fotografias: Terra e Tuma
Fez-se o contrato da mãe e filho com o escritório de arquitetura (também dirigido pela arquiteta Fernanda Sakano), de acordo com honorários compatíveis com o valor total possível e esclarecido desde a primeira conversa. Para viabilizar a edificação dentro desse recurso, os arquitetos auxiliaram na escolha e na elaboração de contratos com o empreiteiro, os complementares, os fornecedores.
A primeira proposta de projeto, feita ainda em 2011, era em estrutura metálica, revestimento externo em telha translúcida, divisórias internas em drywall. A referência explícita no powerpoint de apresentação é a Casa Latapie do escritório francês Lacaton & Vassal. A estratégia era de uma
construção seca com montadores específicos, apostando na rapidez e na minimização de erros de obra.
Chegou a ser feito o projeto executivo dessa versão. Esperou-se mais de um ano para a aprovação do desenho na prefeitura. Permaneceu em stand by por mais alguns meses até o dia de 2014 em que o filho constata que o forro do teto caíra em cima da cama da mãe. Com o risco iminente de ruir, o filho tira a mãe da casa antiga, que passa a morar de aluguel, e liga para os arquitetos informando que a obra tinha que começar.
No momento de executar, o escritório muda o projeto, optando pela segurança da pesquisa construtiva que se iniciara na Casa Maracanã e que se seguiu pela Casa com Estúdio e em mais duas edificações. “Pela responsabilidade da situação, tínhamos que acertar. Não teria quem
pagasse pelo erro”, afirmavam os arquitetos. Seguiram por um método construtivo que tinham domínio, lançando mão do bloco de concreto, sem revestimentos e com o mínimo uso de elementos facilmente encontrados em lojas de construção. Utilizam o essencial para a construção não por uma questão estética ou por qualquer demonstração de verdade do material, mas para dar pragmatismo de obra e reduzir custos.
Referência Casa Maracanã
Fotografia: Pedro Kok
Refizeram os desenhos gerais do projeto (em duas semanas) e iniciaram a demolição da velha casa, durante a qual surgiram os grandes desafios da execução. De um lado, o vizinho, que estava construindo seu segundo andar, escorava sua residência na precária edificação que estava sendo demolida. O muro da casa do outro lado assentava-se direto na terra, sem baldrame. Logo, as fundações eram executadas não somente para estruturar a casa da mãe e do filho, como também para manter em pé os sobrados ao redor. Soma-se a isso o fato do próprio lote não ser nivelado, de modo que foi necessário construir uma laje para estabelecer o piso térreo, vencendo as
irregularidades e cavidades no solo.
Outra condicionante atípica e só verificável no canteiro: o vizinho que se apoiava na antiga casa também invadia o lote em cerca de 50 cm, quebrando a linearidade da lateral. Quando se descobriu isso, o projeto foi todo espelhado, deixando o muro irregular adjacente ao pátio central. Parte considerável dos nove meses de execução foi destinada a esse cuidadoso processo de demolição e de fundações.
Fotografias: Terra e Tuma
A obra foi tocada por um empreiteiro de confiança, do qual partiu a iniciativa de acordar o acompanhamento da construção pelos arquitetos uma ou duas vezes por semana. Em virtude desse modelo, foi possível uma simplificação dos desenhos. Muitas decisões projetuais eram feitas no canteiro, por meio do diálogo com os construtores ou fornecedores. De acordo com a demanda, os arquitetos fizeram as plantas dos dois pavimentos, cortes, fachadas, as ampliações do portão e da escada, definiram as características gerais dos caixilhos. Tudo em pouquíssimas pranchas, de modo a evitar desenhos com detalhamentos raramente lidos pela mão de obra nacional.
Além de otimizar o tempo, este pragmático modo de trabalho minimizava custos e esforços tanto para os arquitetos e empreiteiro quanto para os clientes.
Plantas Térreo, Primeiro Pavimento e Cobertura
Entreveros de obra à parte, o levantamento das paredes de blocos de concreto foi uma etapa rápida. Recuada em relação ao alinhamento frontal do lote, está a sala. A partir dela se segue para um corredor onde se alinham as áreas com instalações hidráulicas – lavabo, cozinha e área de serviço. Em paralelo, está o vazio central com jardim. A separação entre interior e exterior nesse trecho nuclear é feita por uma longa esquadria que permite ampla iluminação e ventilação natural – a antítese da ambiência da velha casa. Ao fundo estão as duas suítes: no térreo para a mãe e no pavimento superior para o filho. A laje de cobertura da sala permite uma ampliação
futura da casa.
Cortes Longitudinais e Transversais
Fotografias: Terra e Tuma
Não somente a residência tem a robustez suficiente para agregar mais cômodos, mas também admite outros tipos de reformas. O chão, que é hoje o concreto alisado da laje, pode receber outro piso. As paredes, que são de bloco aparente, podem vir a ser pintadas, rebocadas ou revestidas. A casa vai se transformar, de acordo com um natural processo de apropriação por dona Dalva, que vai imprimir gradativamente sua identidade a essa casa. Porém, é interessante notar que, posterior à entrega da chave, mãe e filho consultam com frequência os arquitetos para pedir orientação na
disposição do mobiliário, na cor das cortinas, na colocação de suas plantas. O canal de diálogo permanece, pois há um reconhecimento por parte dos moradores da melhora da qualidade de vida pela arquitetura.
Esta não é a casa dos sonhos de dona Dalva. Aqui o Terra e Tuma não trata o projeto arquitetônico como uma tentativa de dar forma aos desejos que ocupam o imaginário da proprietária. No desenho, não há incrementos subjetivos, pois se tem consciência de que a noção estética de cada pessoa é muito singular. Não diferente de qualquer outro caso, o valor afetivo que a matriarca tem com cada material diverge da qualificação concedida às matérias pelos arquitetos.
Portanto, nesta circunstância de grande limitação orçamentária, para que a construção fosse possível, demandava-se a simplificação dos desenhos, a otimização da execução, a materialização exclusiva do que é essencial para dona Dalva morar. Das economias de uma vida inteira, ergueu-se uma casa com um tamanho decente, ventilação, iluminação, sem riscos de o forro cair sobre a cama. Na singeleza da casa na Vila Matilde referendada pela admirável história, restitui-se a noção de arquitetura como produção de espaço que ambiciona eminentemente a dignidade do habitar.
projeto executivo
EXECUTIVO COMPLETO
7 formatos (pdf).
2,87mb
ficha técnica
Local: Vila Matilde – São Paulo, SP
Ano de projeto: 2011 – 2015
Ano de construção: 2015
Área: 95 m²
Arquitetura: Terra e Tuma Arquitetos Associados | Danilo Terra, Pedro Tuma, Fernanda Sakano, Bruna Hashimoto, Giulia Galante, Jéssica Zanini, Lucas Miilher, Zeno Muica.
Construção: Valdionor Andrade de Carvalho e equipe
Estrutura: Megalos Engenharia
Paisagismo: Gabriella Ornaghi Arquitetura da Paisagem
Fotos: Pedro Kok, Terra e Tuma (fotos antigas / fotos de obra)
galeria
colaboração editorial
Renan Maia
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TERRA, Danilo. TUMA, Pedro. SAKANO, Fernanda. PERROTTA-BOSCH, Francesco. “Casa Vila Matilde”. MDC: Mínimo Denominador Comum, Belo Horizonte, s.n., out-2024. Disponível em //www.28ers.com/2024/10/28/casa-vila-matilde. Acesso em: [incluir data do acesso].