Silke Kapp – mdc . revista de arquitetura e urbanismo //28ers.com Sat, 07 May 2011 01:58:21 +0000 pt-BR hourly 1 //i0.wp.com/28ers.com/wp-content/uploads/2023/09/cropped-logo_.png?fit=32%2C32&ssl=1 Silke Kapp – mdc . revista de arquitetura e urbanismo //28ers.com 32 32 5128755 Silke Kapp – mdc . revista de arquitetura e urbanismo //28ers.com/2009/05/09/sindrome-do-estojo/ //28ers.com/2009/05/09/sindrome-do-estojo/#comments Sat, 09 May 2009 04:03:58 +0000 //28ers.com/?p=2649 Continue lendo ]]>

Estojo - Foto Silke KappSilke Kapp

1. introdução

No Trabalho das Passagens, Walter Benjamin reúne, entre outras coisas, uma coleção de fragmentos e comentários sobre os espaços interiores do século XIX, em especial o interior da moradia burguesa. Ele interpreta essa moradia como o “estojo” ou o “casulo” de seus habitantes:

O século XIX, mais do que qualquer outro, foi ávido por moradia. Ele compreendeu a moradia como estojo do ser humano e nele o acondicionou com todos os seus assessórios, tão profundamente que se poderia pensar no interior de um estojo de compasso, onde o instrumento com todas as suas peças repousa em cavidades fundas, revestidas de veludo violeta. Para quanta coisa o século XIX não inventou estojos: para relógios de bolso, pantufas, porta-ovos, termômetros, baralhos ?e, na falta de casulos, capas protetoras, passadeiras, cobertores e forros.[2]

Compasso e seu estojo - Foto - Silke Kapp

Há algumas características notáveis nesses estojos do século XIX. A primeira é o fato de seu exterior raramente revelar o que contêm. As caixas, sejam lisas ou ornamentadas, costumam ter uma aparência que não causa estranhamento, enquanto muitas vezes guardam objetos recém-inventados ou recém-chegados à esfera do uso cotidiano e advindos de uma industrialização ainda pouco habitual. Os estojos de certa maneira protegem da evidência imediata dessa lógica de produção, da mesma forma que a profusão de ornamentos nos produtos massificados. Ambos criam uma capa, um emolduramento, um interstício para a imaginação. Nesse sentido, são contrários à chamada estética da máquina, que tem por premissa evidenciar o funcionamento interno, baseando-se em mecanismos ainda relativamente compreensíveis pela imagem, como a bicicleta ou o 14Bis.

Um segundo aspecto importante dos estojos com os quais Benjamin compara a moradia é seu interior perfeitamente moldado para seu conteúdo, mas, ao mesmo tempo, ainda apto a reter marcas do uso. Nesse interior, importa que as peças não se mexam, não se embaralhem, estejam intactas e disponíveis; as partes devem se encaixar sem folgas. Mas como os estojos são forrados com materiais têxteis, o manuseio repetido de determinados pontos ou mesmo os minúsculos movimentos das peças em suas cavidades criam desgastes singulares. Então, por um lado, o estojo resulta de um raciocínio tecnocrático, que quer acondicionar perfeitamente, da mesma forma que quer ordenar o mundo. Mas, por outro lado, ele evoca a idéia de aconchego dos objetos, como se tivessem alma e ali lhes fosse dado um “repouso merecido” após um “trabalho” executado, na contramão do consumo puro e simples. As mercadorias atuais são acondicionadas em plástico ou espuma; materiais que se quebram ou se dissolvem antes de reterem marcas singulares.

Jogo de Caligrafia e seu estojo - Foto - Silke KappNesse sentido, pode-se dizer que o estojo como que condensa uma dialética própria do século XIX, ou as contradições mesmas da sociedade burguesa, entre imaginação e racionalização, entre um ideal de comunidade livre, igual e fraterna e a prática de um modo de produção que pressupõe dominação, desigualdade social e uma “razoável” indiferença para com o sofrimento alheio. O estojo é racionalizado, predeterminado, constrangedor e, ao mesmo tempo, aconchegante, seguro, confortável e até imaginativo.

Se Benjamin compara as moradias a esses estojos, é porque as pensa segundo uma dialética semelhante. Os interiores burgueses criam, pela primeira vez, um mundo privado como promessa de felicidade. Esse mundo “privado”, como o próprio nome indica e Hannah Arendt enfatizou muitas vezes, é o mundo de privação ?privação de vida pública. Mas, na sociedade burguesa, ele se torna espaço privilegiado, ao menos para as classes que podem dispôr de espaços próprios e não são constantemente ameaçadas de despejo. A moradia burguesa representa o que Adorno chamou de “felicidade no recanto”, apontando que se trata na verdade de uma pseudo-satisfação que resiste na medida em que ignora o que está ao seu redor.

É importante perceber também o quanto a moradia-estojo é pautada na idéia de permanência, contrapondo-se às transformações então em curso em todas as esferas. Da mesma forma que o estojo, a casa amortece os choques externos para que não abalem a vida privada. Para Benjamin, o homem-estojo é alguém que usa de violência sancionada (na forma da exploração do trabalho, por exemplo) em busca de conforto e segurança, e assim resiste à violência não sancionada (na forma de movimentos revolucionários, por exemplo).

Benjamin considera que o século XX teria posto fim à existência-estojo da burguesia do século XIX, sendo o Art Nouveau o primeiro passo decisivo nesse sentido.

O século XX, com sua transparência e porosidade, seu gosto pela luz e pelo ar livre, pôs fim a esse habitar no sentido antigo do termo. […] O art nouveau [Jugendstil] abalou a existência-estojo profundamente. Hoje ela está moribunda e o habitar arrefeceu: para os vivos, pelos quartos de hotel; para os mortos, pelos crematórios.[3]

Talheres e seu estojo - Foto - Silke KappQuero estruturar o argumento que se segue na idéia de que, embora Benjamin tenha razão em certos aspectos e a moradia burguesa do século XIX certamente tenha deixado de existir, o paradigma do estojo se estendeu por todo o século XX e continua nos assombrando até hoje. Chamei-o “síndrome”, porque na medicina e na psicologia esse termo indica características, fenômenos e eventos que freqüentemente ocorrem em conjunto, mas cuja causa não é conhecida. Se ainda assim as síndromes são estudadas, é porque sua descrição e a comparação sistemática de suas ocorrências concretas podem fazer avançar o conhecimento a seu respeito.

Portanto, trata-se aqui de tentar descrever com alguma clareza a projetação de moradias que tem o estojo por modelo explícito ou subreptício. Não tenho a pretensão de lhe descobrir as causas, mas, sim, a de apontar algumas possíveis alternativas. É nesse contexto que quero discutir os temas da mutabilidade e da coordenação modular, vendo essa última menos como um expediente em favor da indústria e mais pelo viés do usuário e do pequeno produtor ou autoprodutor de moradias. Antes disso, porém, retomarei alguns pontos da trajetória histórica do paradigma da moradia-estojo.

2. um lugar para cada coisa, cada pessoa em seu lugar

Voltemos então ao Art Nouveau. É possível que, como expressa a supracitada passagem de Walter Benjamin, ele tenha representado para os seus contemporâneos uma mudança estilística significativa. Mas, retrospectivamente, sua diferença em relação a períodos anteriores não parece tão grande, ao menos no que diz respeito à concepção dos espaços domésticos. Arquitetos como Henry van de Velde ou Otto Wagner projetaram casas que levam ao extremo o princípio ordenador: um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar. Adolf Loos os criticou repetidamente por isso, em especial numa crônica intitulada “De um pobre homem rico”[4], cujo protagonista, um apreciador das artes, sofre na pele a ditadura da prescrição arquitetônica: ao fim e ao cabo, sente que está morto, pois não pode mais se transformar, não pode adquirir novos gostos, nem pode mais ganhar presentes ou comprar coisas, pois todos os lugares de sua casa já estão devidamente preenchidos e qualquer alteração destruiria a harmonia da obra do arquiteto.

O estojo Art Nouveau, embora visualmente menos eclético e por vezes mais arejado do que os do século XIX, é ainda mais ajustado. Ele exacerba a heternomia do habitante, à mesma medida que a autonomia do arquiteto. A moradia como obra de arte anula a possibilidade de marcas ou modificações pelo uso. Como diz Loos, “para a menor das caixinhas havia um lugar determinado, feito especialmente com essa finalidade”[5]. Se a moradia-estojo sempre foi uma tentativa de tornar permanente determinado status quo, esse aspecto parece acirrado no início do século XX.

beecher_008Contudo, nessa forma de tratar o interior da moradia também ainda há a especificidade que então se atribuia às obras de arte. A lógica do espaço é a lógica dos objetos que o integram, mas tais objetos se destinam a expressar algo da singularidade de seus donos. Van de Velde e outros contemporâneos de Loos não projetam para a moradia de massa, mas para pessoas concretas a cujos habitos se dedicam obstinadamente. O procedimento é problemático porque desconsidera a possibilidade de a vida e os desejos dos moradores se modificarem; o casulo cabe ao dono, se e somente se esse permanecer sempre idêntico a si mesmo. Mas, ao mesmo tempo, ele tem a qualidade de ainda não ser casulo genérico para seres humanos abstratos.

Essa última situação só se instala no momento em que os mesmos profissionais de arquitetura antes dedicados às moradias da alta burguesia passam a entender também a moradia popular como seu campo de atuação, isto é, na década de 1920. A princípio, parecem ganhar terreno idéias como transparência e fluidez dos espaços, ausência de delimitações espaciais rígidas e até superposição e mutabilidade de funções. A Casa Schröder projetada por Rietveld e pela viúva Schröder em 1924 permite integrar ou apartar os espaços com grandes elementos corrediços; os apartamentos projetado por Mies van der Rohe para a exposição de Weissenhof em 1927 permite variadas disposições de divisórias internas; e até uma das casas projetadas por Le Corbusier para a mesma exposição tem um espaço multifuncional em lugar de sala e quartos. Nesse sentido, o Movimento Moderno tem aquele caráter destrutivo-subversivo que Benjamin vê como oposição à existência-estojo do burguês bem adaptado. Ele contém, literalmente, uma vontade de “abrir espaço”.

Porém, o mais tardar em 1929, no CIAM dedicado ao Existenzminimum, isto é, à moradia mínima para uma existência supostamente digna, prevale o intuito de enquadrar a população trabalhadora num modo de vida preconcebido, em detrimento das possibilidades de abertura e flexibilização. Como já dito, o estojo é a tentativa de tornar permanente determinado status quo. Inserir também as classes mais pobres em espaços desse tipo, elimina certas formas de ação e a torna mais “administrável”. Se por um curto período o habitante genérico da moradia de massa foi entendido como um sujeito com criatividade e vontade próprias, essas características são paulatinamente eliminadas de suas representações; uma tendência, aliás, que acompanha a do cenário sócio-político da época. No fim, o que sobra das primeiras ambições da arquitetura em relação à moradia de massa é um ambiente doméstico em que o sujeito deve simplesmente se recompor (descansar, alimentar-se, higienizar-se, procriar), da mesma maneira que no ambiente de trabalho deve ser parte da engrenagem produtiva. Nenhum desses dois ambientes comporta o desenvolvimento criativo da própria personalidade ou qualquer espécie de ação inusitada.

As premissas para essa nova modalidade de espaços rígidos e predeterminados já estavam dadas antes, pela lenta entrada do gerenciamento científico de Taylor no ambiente doméstico, impulsionada inclusive por mulheres, como Catherine Esther Beecher, Lillian Gilbreth e Margaret Schütte-Lihotzky. É preciso deixar claro que as intenções dessas mulheres eram emancipatórias, ao menos de seu próprio ponto de vista, pois o estudo dos movimentos ou a disposição otimizada de objetos na moradia deveriam facilitar as tarefas cotidianas, e não oprimir ou restringir suas usuárias. Assim, também as soluções massificadas não se instalam de imediato. As cozinhas são um exemplo: enquanto a “cozinha de Frankfurt” projetada em 1926 por Schütte-Lihotzky para o departamento de habitação da prefeitura daquela cidade tem dimensões padronizadas segundo a estatura mediana das mulheres da época, a “cozinha prática” projetada por Lillian Gilbreth em 1929 para a companhia de gás do Brooklyn deveria ser ajustada às medidas específicas de cada usuária. Essa última concepção ainda lembra os ajustes singulares das ricas casas Art Nouveau que mencionei acima, ao passo que a cozinha de Frankfurt já faz parte do “espírito CIAM” de soluções universais que prevalecerá nas décadas seguintes.

De um modo ou de outro, fica evidente que nem o Art Nouveau nem o funcionalismo modernista abandonam a idéia de projetar espaços e objetos domésticos segundo um determinado roteiro, imposto aos moradores. Embora, como diz Benjamin, os objetos e edifícios de vidro não tenham a aura e privacidade dos estojos burgueses, nada impede que se persista na lógica do acondicionamento. É possível que nas vilas da alta burguesia do início do século XX, para a qual também Corbusier trabalhou, haja de fato uma reversão da moradia estojo do século anterior. Mas quando se trata de abrigar nas metrópoles a população trabalhadora, as características do estojo retornam. Apenas os novos estojos são menos suscetíveis a rastros e marcas pessoais, servindo ainda melhor para acondicionar e condicionar seus habitantes.

A grande contradição do estojo Art Nouveau e do estojo funcionalista é o fato de tolherem o consumo. Loos já evidenciara isso: o pobre homem rico é pobre porque, apesar de ter dinheiro, não tem onde colocar novas aquisições e, portanto, não pode comprar nada. A mesma coisa vale para o espaço doméstico hiperfuncionalizado. Ambos contradizem a formação social em que estão inseridos, porque essa formação social depende da expansão contínua do mercado consumidor. Quando o CIAM propõe o estudo da moradia mínima, em 1929, a lógica da sociedade de consumo do século XX já havia sido descoberta e experimentada por Henry Ford, que aumentara os salários e o tempo livre de seus trabalhadores para que pudessem comprar e usar (desgastar) o Ford T que ele produzia. Ou seja, as massas haviam se tornado o mercado consumidor por excelência. Então, como viabilizar, ao mesmo tempo, uma moradia funcionalizada e o consumo ininterrupto de novas mercadorias?

Entendo que esse impasse leva a duas transformações importantes na maneira de projetar a habitação de massa, mas paradoxalmente não altera a premissa fundamental de encaixe e acondicionamento. A primeira delas é a passagem de uma moradia inteiramente “prêt-à-porter” (pronta para o uso), para uma moradia cujos equipamentos são adquiridos paulatinamente pelos moradores e substituídos com freqüência. Assim, por exemplo, a cozinha de Frankfurt ainda era um equipamento entregue juntamente com a unidade habitacional, e o imenso conjunto de Levittown nos Estados Unidos do inicio da década de 1950 ainda oferecia modelos com TV, geladeira, fogão e estantes embutidos. Mais tarde, prevalecerão moradias com nichos ou “cavidades” vazias, como um album a ser preenchido. A segunda transformação é a idéia de que as moradias poderiam ser substituídas quando não mais comportassem os anseios e necessidades de uma família. A casa Dymaxion de Buckminster Fuller, por exemplo, foi concebida para uma produção industrial seriada, que lançaria periodicamente novos modelos, tal qual a própria indústria automobilística. Os usuários trocariam sua casa, como trocam seu carro. O modelo de Fuller não foi bem sucedido, por razões que não cabe analisar aqui, mas a sua lógica de substituição periódica da moradia prevaleceu largamente sobre outras alternativas, como a possibilidade de moradias alteráveis, adaptáveis, evolutivas ou mutáveis, que tiveram um breve momento de ascenção na década de 1920.

Tal persistência da moradia-estojo está de acordo com um padrão de produção da indústria de bens de consumo chamados “duráveis”, cujo apogeu se dá no segundo pós-guerra. Não interessa a essa indústria que o público deseje quaisquer coisas, mas que deseje as mercadorias que ela tem a oferecer e que, em vista da sua quantidade, são muito pouco diversificadas. Nada melhor, portanto, do que reforçar o comportamento de consumo num setor pelo outro. Não quero insinuar um complô de estratégias bem planejadas entre, por exemplo, os produtores de moradia de massa e os produtores de eletrodomésticos (embora essa possibilidade também não esteja excluída). Mais importante é perceber que o contexto sócio-econômico molda a mentalidade dos consumidores para um ciclo de compra e descarte do qual a moradia também se torna parte. Avi Friedman registra que, ao longo de sua vida útil, uma moradia norte-americana é habitada, em média, por oito diferentes famílias e que, inversamente, as famílias se mudam em média a cada dez anos[6]. Nesse movimento, as pessoas costumam migrar de um lugar a outro e por vezes de um patamar de consumo a outro, mas dificilmente escapam de padrões predeterminados.

camaO argumento mais freqüente em favor desses padrões, utilizado inclusive pela própria indústria que os torna tão persistentes, é a suposição de que oferecem o maior conforto possível em determinada faixa de renda. Mas a própria noção de conforto, a idéia de promover a comodidade do corpo ao sentar, dormir ou executar movimentos, só aparece no início do século XVIII e só alcança o ambiente doméstico já no século XIX. Ela faz parte da sociedade urbana de massa e, como já discuti em outras ocasiões[7], tem relação direta com a anulação do corpo necessária aos novos regimes de trabalho. O modo de produção do capitalismo industrial depende da adaptação de cada indivíduo a um ritmo coletivo minuciosamente definido. Desejos e necessidades de um corpo indisciplinado prejudicam a produtividade. A melhor maneira de domesticar esses corpos, no entanto, não é a violência direta, mas o conforto que os torna passivos e aptos à execução de tarefas sempre parciais e restritas. Tanto é, que a ergonomia, disciplina dedicada ao conforto, significa literalmente “normalização do trabalho”. Se hoje falamos em “ergonomia aplicada à habitação”, “ergodesign” e coisas semelhantes é porque se promove no ambiente doméstico uma adequação padronizada do corpo muito semelhante àquela dos ambientes de trabalho. E “móveis ergonômicos” parecem pertencer à mesma categoria dos “sapatos ortopédicos” e dos “brinquedos pedagógicos”: eles tolhem muitas possibilidades, mas ainda assim nos convencemos de que nos fazem bem.

Em resumo, teríamos então uma história do que chamei de “síndrome do estojo” que se inicia no século XIX, com uma burguesia abastadas, altera seu padrão estilístico com o Art Nouveau, se massifica e se torna científica com a produção dos grandes conjuntos pelo Estado e pela iniciativa privada, e vem se prolongando também pela sociedade de consumo da segunda metade do século XX. Essa síndrome consiste num modo de concepção de moradias em que o bem intencionado projetista prevê cuidadosa e meticulosamente cada movimento, ação, evento e objeto de um futuro usuário abstrato. O usuário é abstrato para o projetista, porque abstrair significa subtrair e o projetista recolhe as características do usuário de estatísticas genérica e vagas representações próprias ou, no melhor dos casos, de um curto momento de contato direto. O projetista cria o cenário tido por ideal para esse usuário abstrato, observando preceitos de conforto e funcionalidade, por sua vez baseados em sistematizações genéricas, tais como as registradas no “Neufert” ?a bíblia da medida exata de objetos, seres humanos e movimentos, e o livro mais vendido de arquitetura em todos os tempos. Sobre os usuários, essa previsão cuidadosa tem um efeito sedutor: ela promete aconchego e conforto e evoca as imagens de vida familiar bem ordenada que a indústria cultural se encarrega de propagar. Apenas depois de algum tempo de uso instalam-se os conflitos, porque os acontecimentos concretos sempre ultrapassam o roteiro abstrato para o qual o espaço foi projetado. Há então três possibilidades: ou os usuários se resignam e se adaptam ao espaço de que dispõem; ou tentam empreender reformas, em geral difíceis, onerosas e cheias de transtornos; ou então, quando podem, almejam uma nova substituição da moradia, mantendo aquecido o mercado imobiliário e a própria indústria de incorporação e construção.

3. alternativas

Paralelamente ao percurso histórico da moradia-estojo houve diversas iniciativas de maior flexibilização. Na supracitada Levittown do início da década de 1950, por exemplo, já havia projetos com divisórias móveis para arranjos diversificados. Mas tais possibilidades se multiplicam sobretudo na década de 1960, quando, nos países industrializados mais ricos, a produção de moradias de massa já está avançada em termos quantitativos e seus problemas se fazem sentir concretamente. Por um lado, a abertura ou a retomada de tais alternativas está relacionada a movimentos políticos e sociais mais amplos de crítica à própria sociedade de massa do século XX; por outro lado, está ligada também a tentativas de diversificação e individualização da oferta de bens, necessárias para manter altos os níveis de consumo, depois que as demandas mais fundamentais parecem estar supridas.

Cito apenas alguns exemplos. Na Holanda, um grupo de arquitetos se associa em 1964 para financiar uma pesquisa da qual N. J. Habraken se tornou coordenador ?o SAR (Stiching Architecten Research)[8]. Seu objetivo era justamente criar estratégias para a habitação industrializada sem a uniformidade das moradias então produzidas naquele país.  Resultou disso um método de produção independente de “recheios” e “suportes”, que acabou envolvendo uma parte expressiva de toda a cadeia produtiva da construção da Holanda e tem conseqüências até hoje no movimento Open Building. Na Inglaterra, em 1969, Reyner Banham, Paul Barker, Peter Hall e Cedric Price publicam um artigo intitulado “Non-Plan: An experiment in freedom”, evidenciando que o planejamento está historicamente relacionado à ausência de democracia e que raramente tem os resultados que almeja[9]. Eles propõem então um experimento de zonas de não-planejamento, em que as próprias pessoas pudessem tomar suas decisões. Semelhante posição em favor da autonomia foi assumida também por John Turner, que, via Unesco, conseguiu implementar políticas habitacionais de fortalecimentos de ocupação e construção espontâneas em vários países[10]. Ao mesmo tempo, a própria indústria começa a produzir sistemas flexíveis, como os móveis Ikea, os brinquedos Lego e uma enorme variedade de sistemas de casas pré-fabricadas.

Não que esses movimentos e tendências fossem todos motivados pelos mesmos interesses. Alguns pretendem rupturas com o status quo, enquanto outros são simples expedientes de aumento de vendas e ainda outros se situam vagamente entre esses dois extremos. Mas, de qualquer forma, todos apontam para possibilidades diferentes da moradia-estojo, seja pela adaptabilidade das habitações ao longo do período de uso, pela ampliação das opções disponíveis, pela multifuncionalidade dos espaços ou pela autoprodução.

É nesse contexto também que a idéia da coordenação modular passa de um simples problema da indústria a uma possibilidade relevante para a qualidade do ambiente construído. O módulo de 10cm e as série de “números preferíveis” já haviam sido acordados nos países europeus em 1955, considerando prioritariamente a otimização de processos industriais. Com ou sem coordenação modular a indústria da construção pode perfeitamente continuar produzindo milhares de unidades idênticas. Contudo, quando se põe essa discussão na perspectiva de uma maior possibilidade de escolha dos usuários finais (por exemplo, entre diferentes “recheios” para um mesmo “suporte”, como no sistema inaugurado por Habraken) ou de autonomia desse usuários (por exemplo, na facilidade de autoconstrução, reforma e bricolagem), elas adquirem novas implicações para a produção do espaço e novos significados e prioridades.

planta humanizada - mrvNo Brasil, esses experimentos tiveram muito pouca repercussão para além de algumas menções em revistas especializadas. Os estojos se perpetuaram inabalados e, a meu ver, ainda regem a grande maioria dos projetos de moradias, sobretudo as produzidas em massa e em condições formais. O perfeito acondicionamento ainda é um ideal perseguido e entendido como boa prática, assim como a passividade do usuário em relação ao seu espaço ainda é o comportamento almejado. No fundo, não nos convencemos de que a moradia-estojo seja um mal a combater. A Caixa Econômica Federal, por exemplo, exige determinadas configurações espaciais para os financiamentos de imóveis habitacionais: não se admite uma moradia que não tenha pelo menos uma partição que caracterize um dormitório separado de outros espaços. De modo análogo, o Código de Obras de Belo Horizonte é inteiramente pautado na monofuncionalidade dos espaços, alguns dos quais com exigências bastante específicas. E tudo isso chega ter um sentido humanista, porque, bem ou mal, o estojo também carrega consigo a imagem de aconchego, conforto e segurança. Tanto é, que quando os projetos evidenciam o que se acondiciona onde, são denominados “plantas humanizadas”. Slogans como “projetos inteligentes: melhor aproveitamento do espaço”, que indicam uma previsão ainda mais meticulosa de cada objeto e evento, são usados tanto para produtos populares quanto para os luxuosos e não parecem incomodar nem mesmos aos arquitetos mais críticos.

Entendo que em parte essa persistência dos estojos se deva ao fato de que nossa demanda básica por moradias não está suprida, o que leva ao entendimento errôneo de que flexibilizações na produção seriam luxos inadmissíveis. Por outra parte, o apego a espaços predeterminados também reflete de um longo período de autoritarismo (aliás, bem anterior a 1964), cujos hábitos se transformam apenas muito lentamente. Assim, as práticas participativas no planejamento de empreendimentos habitacionais subsidiados têm se tornado mais comuns, mas ainda não costumam incluir concepções com escolhas individualizadas para as famílias ou que efetivamente facilitem mudanças nas moradias ao longo do tempo. De um modo geral, reformas ou acréscimos feitos pelos usuários ainda são tidos por inconvenientes.

Nesse contexto, metodologias como a coordenação modular também costumam ser vistas como simples otimizações de processos construtivos, tanto por aqueles que lhe são favoráveis, quanto por seus críticos. Esses últimos a entendem como um afastamento da “escala humana” e em prol do maquinário: as grelhas abstratas de um módulo ortogonal de dez centímetros são somente a concretização final de uma arquitetura tecnocrática. Penso que essa crítica é pertinente, mas faz perder de vista o caráter opressivo do próprio espaço-estojo supostamente humanizado; quanto melhor um espaço se adequa a determinada orquestração de usos, mais dificulta outros usos quaisquer.

Mais frutífero seria entender a questão na sua ambigüidade. Pautar os objetos na possibilidade de sua conjunção livre e flexível não é apenas sair do registro da escala humana ?da qual, a meu ver, já saímos a muito tempo ?mas também abre a possibilidade de essas conjunções serem feitas por qualquer pessoa e em qualquer circunstância. Uma coordenação modular que não fosse, ao mesmo tempo, voltada para a mutabilidade dos espaços, de fato seria somente um modo de facilitar a vida de seus produtores diretos e indiretos, tendendo a favorecer a indústria da construção e talvez alguns autoconstrutores, mas sem fazer diferença substancial para os próprios moradores. Porém a idéia da coordenação modular na construção pode ultrapassar essa perspectiva restrita e facilitar substancialmente a produção de moradias para além dos estojos.

Para que ocorram mudanças de perspectiva desse tipo, é essencial que haja envolvimento de outros agentes que não apenas os da própria indústria da construção. Tome-se como exemplo a chamada “produção flexível”, hoje tão em voga nas empresas. Ela não coincide necessariamente com nenhuma  flexibilização de produtos para os usuários finais; pelo contrário, na maioria dos casos as empresas flexibilizam sua organização interna para responderem mais rapidamente a mudanças conjunturais, mas continuam oferecendo os produtos predefinidos. Da mesma maneira, a coordenação modular na construção não representa, em si mesma, uma possibilidade nova para a moradia. A tendência geral, no caso de ela se difundir no Brasil, é de produção dos mesmos tipos de unidades habitacionais por meios mais racionalizados. Se quisermos aproveitá-la para favorecer também uma maior abertura na produção do espaço de um modo geral, terá de haver engajamento e investigação nesse sentido, especialmente por parte dos profissionais, pesquisadores e estudantes de arquitetura.


notas e referências bibliográficas

[1] Texto originalmente apresentado no IV Colóquio de Pesquisas em Habitação : Coordenação modular e mutabilidade, em 14ago.2007.

[2] Benjamin, Walter. Das Passagen-Werk. Erster Band. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1982, p.292.

[3] Benjamin, op.cit., p.292.

[4] Loos, Adolf. Von einem armen, reichen Manne. In: Ins Leere Gesprochen. Wien: Prachner, 1997, p.198-203.

[5] Loos, op.cit, p.200.

[6] Cf. Friedman, Avi. The Adaptable House. Designing homes for change. New York: McGraw-Hill, 2002.

[7] Kapp, S. Abenteuer der Körper in ungemütlichen Städten. Cloud Cuckoo Land Internacional Journal Of Architectural Theorie, Cottbus, v. 7, n. 1, p. 1-8, 2002; e Kapp, S. Anti-catarse ou a Contaminação pela Arquitetura. In: Rodrigo Duarte; Virgínia Figueiredo; Verlaine Freitas; Imaculada Kangussu. (Org.). Kátharsis. Reflexões de um conceito estético. 1 ed. Belo Horizonte: C/ Arte, 2002.

[8] Cf. Habraken, N.J. et al. El Diseño de Soportes. Barcelona: Gustavo Gili, 2000. E Bosma, Koos / Hoogstraten, Dorine van / Vos, Martijn. Housing for the Millions: John Habraken and the SAR 1960-2000. Rotterdam: NAI, 2004.

[9] Cf. Hughes, Jonathan / Sadler, Simon. Non-plan. Essays on Freedom Participation and Change in Modern Architecture and Urbanism. Oxford: Architectural Press, 2000.

[10] Cf. Turner, John. Housing by people. Towards Autonomy in Building Environments. London: Marion Boyars, 1991.


silke kapp
Formada em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 1988), Mestre e Doutora em Filosofia (UFMG, 1999), Professora Adjunta do Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura da UFMG, Coordenadora do Grupo de Pesquisa MOM (Morar de Outras Maneiras). Autora de Non Satis Est ?Excessos e Teorias Estéticas no Esclarecimento (Porto Alegre: Escritos, 2004) e de diversos artigos e capítulos de livros nas áreas de Arquitetura e Filosofia.

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Encontros e palestras

Casa do Baile . Belo Horizonte
12 de março de 2006 . 16h



Abertura: André Prado
Palestra: Denise Bahia
12 de março de 2006 . 16h



Palestra: Silke Kapp
12 de março de 2006 . 16h30



Palestra: Álvaro Puntoni
12 de março de 2006 . 17h



Debate
12 de março de 2006 . 18h00


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Silke Kapp

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Escrevi em outra ocasião que a prática arquitetônica do movimento moderno manteve intacta uma série de concepções tradicionais de projeto, cunhadas historicamente pela produção do espaço extraordinário [1]. Chamo de extraordinário o espaço dos objetos excepcionais, monumentais, destinados ao culto, à representação política ou à guerra, em contraposição ao espaço da vida cotidiana, que poderíamos denominar ordinário, no sentido em que os anglófonos entendem o termo. O espaço extraordinário já era tema central para Vitrúvio ?que, afinal, escreveu para aconselhar seu imperador no controle das obras públicas ?e, no Renascimento, é o contexto em que surge a figura moderna do arquiteto. Na construção de objetos excepcionais o arquiteto se alça da condição de trabalhador manual à de trabalhador intelectual, que domina o desenho e, com esse instrumento abstrato, domina também os demais trabalhadores do canteiro. Enquanto isso, o espaço dos usos cotidianos, triviais, continua a ser produzido sem arquitetos e sem seus instrumentos de controle.

A situação só se modifica parcialmente no início do século 20, quando sobretudo os arquitetos do Movimento Moderno assumem para si a tarefa de projetar também o espaço comum: moradias, comércio, convívio, etc. A inovação não ocorre por iniciativa espontânea ou por motivações humanistas, mas nas circunstâncias políticas e econômicas de uma formação social capitalista então seriamente ameaçada de colapso (e em cuja análise não me deterei aqui). Ao se enveredarem por esses novos temas de projeto, os arquitetos do Movimento Moderno de fato os entendem como temas, não como possibilidade de transformação radical de seu próprio papel na sociedade. Como dito no início, não abandonam as premissas e os procedimentos advindos da tradição dos monumentos. Persistem ?e a meu ver isso vale ainda hoje ?os ideais do objeto arquitetônico como obra (de arte), creditado a um autor (artista ou intelectual), com usuários passivos, sejam eles observadores que contemplam a obra, sejam personagens que nela atuam segundo o roteiro estabelecido pelo autor.

Aqui quero centrar essa mesma discussão na noção de integridade, sintetizando as questões anteriores e, ao mesmo tempo, aprofundando-as em alguns aspectos. Trata-se de argumentar o quanto o capital simbólico (Bourdieu) do campo da arquitetura ainda está pautado no ideal da integridade, o quanto esse ideal tende a ser pernicioso para o conjunto dos seres humanos envolvidos na produção e no uso do espaço arquitetônico e que tipo de raciocínios poderíamos experimentar em contraposição a esse ideal.

Integridade vem do latim integer, que s­ignifica completo, inteiro. Íntegra é coisa intacta, não danificada ou corrompida. No âmbito ético, integridade designa a virtude da coerência entre os princípios e valores de uma pessoa e suas ações práticas. No âmbito das obras de arte, especialmente da arte codificada pela sociedade burguesa do século XIX, a integridade está relacionada a ambos os aspectos e, ainda, a sua conjunção: integridade material ou sensível, integridade formal ou intelectual e coerência entre uma coisa e outra. A obra íntegra é um objeto no qual “nada se pode acrescentar, retirar ou alterar sem torná-lo pior?(Alberti) [2], um objeto que engendra a “manifestação sensível da idéia?(Hegel) e um objeto em que os chamados forma e conteúdo se correspondem de alguma maneira. Ele é enfim, um objeto que tem certa logicidade própria, ainda que ela não seja a mesma do mundo empírico exterior à obra. É interessante lembrar nesse contexto um critério sugerido por Alexander Baumgarten para qualificar a poesia. Ele dizia que a boa ficção poética poderia, sem nenhum problema, contrariar as leis naturais do mundo que conhecemos, operando num “heterocosmos? isto é, num cosmos inventado pelo poeta, desde que esse outro cosmos tivesse as suas próprias leis, não contraditórias entre si ou mutuamente excludentes [3]. Isso se aplicaria tanto às coisas (rei) que o poema apresenta, quanto à ordem ou disposição do próprio poema e ao seu modo de expressão. O que esse filósofo do século 18 considerou especificamente para a poesia tornou-se um princípio geral da obra de arte burguesa.

Durante muito tempo a Arquitetura, enquanto profissão e disciplina acadêmica, foi entendida como parte do “sistema moderno das artes?(Kristeller) e praticada, ensinada e avaliada no contexto institucional de pintura e escultura. Assim, o ideal da integridade também faz parte da história da arquitetura desde o Renascimento. Ele se expressa primeiro na consistência geométrica e ornamental das ordens clássicas, passa pela coerência entre essas ordens e a função dos edifícios, oscila entre a lógica apreendida pelo intelecto e a completude percebida pelos sentidos, até desembocar na catalogação de estilos históricos e no ecletismo, que são a própria ameaça de desintegração, para finalmente ser recuperado pelo Movimento Moderno. Aliás, nessa linha de raciocínio, o Movimento Moderno foi mais tradicional do que a tradição que se esforçou em superar. Não perseguia mais a clássica ordenação ornamental, é verdade. Mas valores como verdade estrutural, correspondência de forma e função, coincidência entre construção e expressão plástica nada mais são do que ideais de integridade.

Enquanto a produção dos arquitetos esteve restrita ao espaço extraordinário, os critérios aí implicados e a analogia de obras de arte e obras de arquitetura talvez até tivessem alguma pertinência. Se bem que não se deve esquecer o argumento de Paulo Bicca, de que a arquitetura dos arquitetos difere fundamentalmente de outras artes, porque cinde trabalho intelectual e manual, em vez de reuni-los; e de que não há arquitetura monumental sem dominação, porque nenhum ser humano se dispõe à penosa tarefa de construção material de idéias alheias sem ser coagido a isso de alguma forma [4].Mas admitamos por ora que, apesar de tudo isso, possa fazer algum sentido construir palácios, igrejas, parques públicos, estações ferroviárias ou museus segundo um conjunto de princípios e sob o comando de um autor. E podemos até conceder também que o tipo de técnica de que nós dependemos hoje torna necessárias determinadas edificações de grande porte e complexidade controlada. A pergunta é se a mesma coisa se aplica ao espaço em geral.

A minha resposta a essa pergunta é, evidentemente, negativa. Isso em razão de um único argumento. O tipo de integridade que o campo disciplinar da arquitetura valoriza depende da existência de uma sociedade em cujas construções a maior parte dos cidadãos não interfere ativamente, isto é, uma sociedade em que tanto as pessoas que constróem (materialmente), quanto aquelas que usam o espaço se submetem à ordem engendrada por um grupo relativamente pequeno. Nenhuma democracia real pode ser constituída dessa maneira. Numa democracia real “qualquer sistema que não dá o direito de escolha a quem deve suportar as conseqüências de uma escolha ruim é um sistema imoral.?[5]

Os ideais de integridade do Movimento Moderno não se concretizaram a não ser em alguns poucos objetos que agora precisam ser cuidadosamente preservados para não se desintegrarem pela intervenção de quem as usa. A compartimentação da cidade em trabalho, moradia, lazer e circulação se mostrou descabida, o plano piloto de Brasília se tornou uma ínfima parte da cidade real, favelas e outras formas de construção informal sustentam a cidade formal, as medidas de planejamento estão paradoxalmente dedicadas não ao futuro mas ao que já aconteceu. Mas, não obstante esse evidente fracasso, arquitetos continuam se queixando da incompreensão de construtores e usuários, as escolas continuam preconizando a existência de um “conceito?a ser coerentemente seguido nas decisões de projeto, e as tendências arquitetônicas mais recentes continuam oscilando entre os diferentes ideais de integridade: plástica, estrutural, construtiva, funcional, filosófica ou metafórica. Ocupam-se da vontade íntima do tijolo, sem refletir o fato de que a consecução da vontade de um projetista implica a supressão da vontade de muitos outros cidadãos.

Levado a sério, esse raciocínio leva a uma outra maneira de pensar a atuação do arquiteto: não como planejador ou projetista do espaço alheio, mas possivelmente como gerador de instrumentos que facilitam as decisões e ações sobre o espaço por aqueles que o constróem e usam. Para explicitar isso um pouco mais, quero contrapor ao ideal da integridade a noção de auto-organização. Auto-organização é um processo de incremento espontâneo na organização de um sistema, sem que haja controle pelo meio circundante ou por um outro sistema externo. A auto-organização gera estruturas de maior complexidade dentro e a partir do próprio sistema original. Estamos habituados a crer que, para tudo aquilo que está de alguma maneira organizado, deve haver um organizador externo ?em última análise, Deus, o chamado arquiteto do universo. Aliás, a prova da existência de Deus por Santo Tomás de Aquino se baseia nesse argumento. Ele está refletido também no paradigma da entropia ou no princípio, derivado da segunda lei da termodinâmica, de que a diferenciação interna de um sistema tende a diminuir por natureza até o limite da homogeneidade absolutamente indistinta. Hoje, as ciências naturais estão mais afeitas à hipótese de que a própria vida teria surgido num processo de auto-organização.

No entanto, não quero recair aqui nas mal compreendidas metáforas científicas. Não se trata de reproduzir, pela plasticidade escultural, por um avançado programa de computador ou por qualquer outro expediente, lógicas fuzzy, fractais e outros processos da natureza pós-newtoniana. Em matéria de arquitetura, nada disso seria fundamentalmente diferente do que se fez desde o Renascimento, pois empregar um programa gerador de formas complexas em lugar dos ditames da tratadística clássica ou das formas “brancas?do Modernismo não modifica em nada o poder de decisão das pessoas sobre seu próprio espaço. Pessoas são providas de vontade ou arbítrio; não devem ser abordadas nem como personagens de uma obra, nem como partículas de um processo físico-químico. Do ponto de vista social, a possibilidade de auto-organização é a possibilidade de autonomia de indivíduos e grupos, isto é, a possibilidade de que dêem a si mesmos suas próprias normas, em lugar de as receberem por imposição externa, heteronomamente.

Esse tipo de auto-organização, que envolve pessoas providas de vontade, contraria a inte­gridade em que a arquitetura é tradicional­mente pautada, pois pressupõe a existência de elementos indeterminados e de elementos redundantes ou, num sentido amplo do termo, elementos desprovidos de função e elementos de mesma função. Nem no sistema original, nem em qualquer um de seus progressivos estados de auto-organização ter-se-á a situação preconizada por Alberti, em que nada se pode acrescentar, retirar ou modificar sem torná-la pior. Ao mesmo tempo, parece crucial para um sistema sócio-espacial passível de auto-o­rganização que seus elementos sejam propícios a novos vínculos. Li recentemente uma boa metáfora para explicar isso, à qual recorro aqui por pensar que ela é suficientemente longínqua para evitar o risco de seu uso literal na arquitetura. Se misturarmos um monte de clips de papel numa coqueteleira, alguns poucos clips talvez formarão pequenas correntes. Mas se fizermos a mesma coisa com clips abertos previamente, a quantidade de elos tende a ser bem maior [6]. Na minha opinião, a preocupação dos arquitetos deveria estar centrada nessa diferença.

notas

1.  “Moradia e Contradições do Projeto Moderno? Revista Interpretar Arquitetura. Vol.6, N.8. Belo Horizonte, Outubro 2005. URL; //www.arquitetura.ufmg.br/ia/
2.  Leon Battista Alberti. On the Art of Building in Ten Books (De Re Aedificatoria). Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1996, VI, 2.
3.  Alexander Baumgarten. Meditationes philosophicae de nonullis ad poema pertinentibus/ Philosophische Betrachtungen über einige Bedingungen des Gedichtes (1735).Hamburg: Felix Meiner, 1983, § 22 et seq.
4.  Paulo Bicca. Arquiteto: A Máscara e a Face. São Paulo: Projeto, 1984.
5.  Yona Friedman. Toward a Scientific Architecture. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1980, p.13.
6.  F. Heylighen, C. Joslyn and V. Turchin (editors): Principia Cybernetica Web URL: //pespmc1.vub.ac.be/REFERPCP.html.

silke kapp (1966)
Formada em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 1988), Mestre e Doutora em Filosofia (UFMG, 1999), Professora Adjunta do Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura da UFMG, Pesquisadora do CNPq, Coordenadora do Grupo de Pesquisa MOM (Morar de Outras Maneiras), com projetos de pesquisa financiados pela FINEP (Ministério de Ciência e Tecnologia), pelo CNPq e pelo Instituto Libertas. Autora de Non Satis Est – Excessos e Teorias Estéticas no Esclarecimento (Porto Alegre: Escritos, 2004) e de diversos artigos e capítulos de livros nas áreas de Arquitetura e Filosofia.

contato: skapp@pesquisador.cnpq.br | www.arquitetura.ufmg.br/mom

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