Semana de 22 – mdc . revista de arquitetura e urbanismo //28ers.com Fri, 27 Feb 2015 19:33:42 +0000 pt-BR hourly 1 //i0.wp.com/28ers.com/wp-content/uploads/2023/09/cropped-logo_.png?fit=32%2C32&ssl=1 Semana de 22 – mdc . revista de arquitetura e urbanismo //28ers.com 32 32 5128755 Semana de 22 – mdc . revista de arquitetura e urbanismo //28ers.com/2015/02/25/antonio-garcia-moya-um-arquiteto-da-semana-de-22-parte-2/ //28ers.com/2015/02/25/antonio-garcia-moya-um-arquiteto-da-semana-de-22-parte-2/#comments Wed, 25 Feb 2015 04:57:23 +0000 //28ers.com/?p=9055 Continue lendo ]]> ou

la mala suerte

Templo, Antonio Garcia Moya, s.d.

Sylvia Ficher

*

Não farei apologias porque me repugnam de igual maneira diatribes e descompassado louvor.

Mario de Andrade, De São Paulo II, 1920.2

O “Modernismo”, no sentido que lhe deram seus fundadores, pertence hoje ao Passado. Dir-se-ia, pois, falando linguagem cara aos insurrectos de 1922, que virou passadismo. Quer dizer: foi superado. Mas não seria justo nem honesto recusar-lhe importância histórica. Negá-lo seria ingênuo. Como seria tolice repeti-lo.

Peregrino Júnior, O movimento modernista, 1954.

Plunct Plact Zum
Não vai a lugar nenhum!!
Tem que ser selado, registrado, carimbado
Avaliado, rotulado se quiser voar!

Raul Seixas, Carimbador maluco, 1983.

Desconcerto: ainda a prótase

Residência Remo Corsini, Moya & Malfatti, 1938.Afinal, em que consiste o juízo que se estabeleceu sobre Antonio Garcia Moya (1891-1949), juízo este que tanto me incomoda? Num improcedente infortúnio ?para não dizer azarão ?crítico. O que predomina são meras opiniões expostas em comentários superficiais, quando não preconceituosos e intransigentes, assentadas no mais das vezes no vácuo de informações que as fundamentem.De 1922 até a edição entre 1954 e 1955 das “Notas para a história do modernismo brasileiro”, de Mário da Silva Brito (1916-?)3 ?notas essas que dariam origem ao seu Antecedentes da Semana de Arte Moderna em 1958 ? raras são as referências a ele, afora a publicação de uma bela série de projetos de seu escritório, Moya & Malfatti, de fins da década de trinta a inícios da de cinquenta.Ausente está até naquelas notícias que versam diretamente sobre a Semana de Arte Moderna. Juntamente com o de outros expositores e sem comentário algum, seu nome é registrado em matérias de jornal ?meros press releases ?antes e durante a realização do evento, de 13 a 17 de fevereiro. Com um tiquinho de informação, veja-se, por exemplo, “Semana de Arte”, no Correio Paulistano, de 29 de janeiro; “De uma noite a outra” (original em italiano), no Il Piccolo, ou “Semana de Arte Paulistana no Municipal” (original em alemão), no Deutsche Zeitung, ambas de 13 de fevereiro.4

Alguns projetos da Moya & Malfatti na Acrópole.

Residência Reynold King Hughes, Moya & Malfatti, 1938. Residência Reynold King Hughes, Moya & Malfatti, 1938.
Residência Domicio Pacheco e Silva, Moya & Malfatti, 1950. Residência Domicio Pacheco e Silva, Moya & Malfatti, 1950.

22 por 22, a Semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporâneos, Maria Eugenia Boaventura, 2008.Minimamente mais atento à arquitetura foi Sergio Milliet (1898-1966) em “Une semaine d’art moderne à São Paulo”, artigo publicado dois meses depois na Bélgica e o mais detalhado dentre aqueles da época:

Em arquitetura podemos admirar os templos de Moya e as casas de campo de Przyrembel.5

Templo, Antonio Garcia Moya, s.d. Taperinha na Praia Grande, Georg Przyrembel, 1922.

Lembrado de fato será por Menotti del Picchia (1892-1988), que reiteradamente o cita nos artigos que escreve por ocasião de aniversários da Semana, sempre incluído entre os integrantes do sodalício vanguardeiro. Já no primeiro decenário, em 1932, ao descrever o clima pré-1922, Menotti não deixa dúvidas quanto ao membros de seu núcleo duro. E não poderia ser mais peremptório quanto à precedência que atribui a Moya em relação a Gregori Warchavchik (1896-1972) e Flávio de Carvalho (1899-1973) ? quem iriam compor, juntamente com Rino Levi (1901-1965), o triunvirato moderno-arquitetônico paulistano por excelência:

As conspirações iniciais da grande revolta ?da verdadeira revolta brasileira ?eram feitas por Oswald, Mario e eu numa casinha da rua Rui Barbosa, onde havia um gramofone, ou em nossa casa, então na rua da Consolação ou no gabinete muito erudito, muito cheio de revistas alemãs e francesas do criador da Paulicea desvairada.

O grupo de artistas ?escultores, músicos, pintores e arquitetos, que preparavam o assalto no setor da plástica, eram Victor Brecheret, Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Moya. Nesse tempo, Tarsila era acadêmica e não havia notícias de Flávio, o homem do lincha! lincha!, nem do Warchavchik, nem do Segall.6

Tarsila, de acadêmica a moderna.

Estudo (Nu sentado), Tarsila do Amaral, 1921. Interior do atelier de Auteuil, Tarsila do Amaral, 1921. Estudo colorido de composição cubista I, Tarsila do Amaral, c. 1923.
Experiência no 2 : realizada sobre uma procissão de Corpus-Christi, Flavio de Carvalho, 1931. Casa da rua Santa Cruz, Gregori Warchavchik, 1927.

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Segall, antes e depois da vinda definitiva para o Brasil em 1924.

Interior de pobres II, Lasar Segall, 1921.Menino com lagartixas, Lasar Segall, 1924.

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Igualmente em 1952:

Trinta anos! Nesta data, em 1922, no palco do Teatro Municipal, sentado displicentemente diante de uma plateia hostil, o grande Graça Aranha ?embaixador, membro da Academia Brasileira de Letras, famoso autor de Canaan ?rebelado e temerário, com uma surpreendente palestra, dava início à Semana de Arte Moderna, revolução sem sangue que revolveu toda a mentalidade do país.

...No “hall” do nosso teatro máximo os “novos” haviam organizado uma exposição de pintura, escultura, arquitetura. Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Zina Aita, Vitor Brecheret, Moya e outros artistas antecipavam as irreverências da Bienal com telas abstracionistas, cubistas, surrealistas. No estrado de diretor, Villa-Lobos dirigia suas sinfonias consideradas malucas e hoje consagradas pela crítica do mundo.7

Chanaan, Graça Aranha, 1902.1ª Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1951.

Note-se a alusão nada gratuita, muito bem endereçada à recém-concluída 1ª Bienal de Arte de São Paulo.

E mais nada sobre o Antonio Garcia Moya quando o assunto é a Semana.

Injusto seria nos queixarmos da inexistência de referências seja a ele, seja a ela, em Brazil builds ?ou, melhor, Construção brasileira,8 documento de 1943 e tão extraordinário para a revelação da nossa arquitetura moderna mundo afora, no entanto catálogo de uma exposição voltada para momento bem posterior. Como que lhe dando continuidade, as publicações em periódicos estrangeiros vão se centrar na produção arquitetônica da hora, conforme discutido por Nelci Tinem em O alvo do olhar estrangeiro: o Brasil na historiografia da arquitetura moderna (2002). Igualmente o esforço pioneiro dos estudantes da então novíssima Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil com sua Ante-projeto, revista editada por Edgar Graeff (1921-1990), Marcos Jaimovich (1921-2009), José Duval, Nestor Lindenberg e Slioma Selter, e cujos números estão reunidos em Arquitetura contemporânea no Brasil (1947).

"Construção brasileira", mais conhecido por "Brazil builds", Philip L. Goodwin, 1943. "O alvo do olhar estrangeiro: o Brasil na historiografia da arquitetura moderna", Nelci Tinem, 2006 (1ª ed. 2002). "Arquitetura contemporânea no Brasil", 1947.

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Ainda na década de quarenta, a arquitetura começa a se fazer presente em balanços de caráter mais geral sobre o desenvolvimento do modernismo no Brasil ?porém não aquela da Semana. Desde o precursor Retrato da arte moderna do Brasil (1947), onde o paulista Lourival Gomes Machado (1917-1967) acuradamente mostra como a Semana dava continuidade a movimentos de renovação artística já em curso no país. Só que tal renovação na arquitetura seria tardia, ocorrendo em São Paulo apenas a partir de meados da década de vinte, “com algum natural atraso, é certo ?à fase vanguardeira que a literatura e a pintura já tinham conhecido, pelo menos uns dez anos antes.”9 Para tomar fôlego na década seguinte quando “a liderança passou ao Rio de Janeiro (para onde aliás já viajara, em multiplicação, boa parte da pintura modernista).”10

"Retrato da arte moderna do Brasil", Lourival Gomes Machado, 1947. "Muita construção, alguma arquitetura e um milagre", Lucio Costa, 1951. "A arquitetura brasileira dos séculos XIX e XX", Mario Barata, 1952.

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Relatos históricos especificamente voltados para a arquitetura brasileira, encontramos alguns deles dos anos cinquenta; contudo, ao abordarem o modernismo tendiam a ser mais focados no Rio de Janeiro e na década de trinta, sequer se referindo à Semana.

Do franco-carioca Lucio Costa (1902-1998), temos “Muita construção, alguma arquitetura e um milagre” (1951) no qual afirma ?com cordialidade bem distante do tom ríspido empregado anos antes em sua “Carta-depoimento” (1948)11 ?a precedência de São Paulo em relação ao Rio no que se refere à arquitetura moderna, entretanto localizando a novidade, como já se tornara praxe, em fins da década de vinte.

Conquanto o movimento modernista de São Paulo já contasse desde cedo com a arquitetura de Warchavchik (o romantismo simpático da casa da Vila Mariana data de 1928), aqui no Rio somente mais tarde, depois da tentativa frustrada de reforma do ensino das belas-artes, de que participou o arquiteto paulista e que culminaria com a organização do Salão de 1931, foi que o processo de renovação, já esboçado aqui e ali individualmente, começou a tomar pé e organizar-se12

O carioca nascido na Suíça Mario Barata (1921-2001) vai no mesmo rumo em seu A arquitetura brasileira dos séculos XIX e XX (1952):

Em 1927 ou 1928 Gregory Warchavchik iniciava no Brasil a luta por esse funcionalismo arquitetônico, ligado ao cubismo plástico. Com ele passará a trabalhar Lucio Costa.13

Acrescentando que “o surto da arquitetura moderna brasileira” muito deveu tanto a Costa, como

ao ambiente intelectual e artístico do país ?a Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Rodrigo M. F. de Andrade e outros, que renovaram a nossa cultura a partir de 1922.14

L'architecture moderne au Brésil, Henrique Mindlin, 1956. Modern architecture in Brazil, Henrique Mindlin, 1956. Neues Bauen in Brasilien, Henrique Mindlin, 1957.

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Um pouco mais detalhado é o posicionamento do paulista Henrique Mindlin (1911-1971), cujo L’architecture moderne au Brésil (1956) trata a Semana com gentileza, ressaltando seu significado cultural ainda que sem entrar em maiores particulares e nada dizer sobre a arquitetura nela exposta. Apesar de apontar seu crédito para a recepção dada por São Paulo ?senão calorosa, ao menos sem maiores estranhamentos ?ao nosso trio pioneiro oficial, também deixa implícita a ideia de que nela não houve a presença de algo a ser considerado “arquitetura moderna”, uma vez que este algo se manifestaria somente anos depois, de 1925 em diante:

L’influence de la Semaine d’Art Moderne sur l’architecture ne tarda pas à se faire sentir. En 1925, Gregori Warchavchik lança dans les journaux de São Paulo et Rio son “Manifeste de l’Architecture Fonctionelle”…, et Rino Levi, encore etudiant a Rome, publiait … un article où il réclamait un urbanisme brésilien. Lorsque, en 1927, eut lieu un concours pour la construction du Palais du Gouvernement de São Paulo, Flávio de Carvalho scandalisa l’opinion publique avec un project “moderniste”15

Acerca da Arquitetura Moderna, Gregori Warchavchik, 1925.Palácio do Governo de São Paulo, Flávio de Carvalho, 1927.

Simplório seria ver nessas nuances meras manifestações de bairrismo; muito mais estava em jogo, todavia esta não é a ocasião para nos aprofundarmos em porquês… Seu tempo e circunstância virão muito adiante, no compasso lento que vem tomando essa minha infinda tagarelice.

Interessa notar é que, turvando o contexto, por então é a própria Semana que entra na berlinda, dita movimento sem programa estético consistente. Demanda das mais despropositadas, na medida em que o estabelecimento de um ideário em comum ou de uma linha de ação conjunta não parece ter sido um propósito dos participantes. Mesmo assim, as tantas conferências então realizadas expunham as opiniões de seus autores frente às temáticas da vanguarda. Ou seja, elas contemplavam algum tipo de posicionamento, mesmo que não necessariamente um consenso ?ou ao menos uma convergência ? sobre o que cada um estava pensando ser “arte moderna.” Veja-se as duas mais conhecidas: “A emoção estética na arte moderna,” de Graça Aranha (1868-1931), proferida a 13 de fevereiro; e “Arte moderna”, de Menotti del Picchia, proferida a 15 de fevereiro.16

Programação que pertenceu a Paulo Prado, 1922.Um imprescindível espicilégio: "Vanguarda européia e modernismo brasileiro", Gilberto Mendonça Teles, 2012 (20ª ed. ampliada; 1ª ed., 1972).

Para o primeiro, a subjetividade é a questão central:

E eis chegado o grande enigma que é o precisar as origens da sensibilidade na arte moderna. Este supremo movimento artístico se caracteriza pelo mais livre e fecundo subjetivismo. É uma resultante do extremado individualismo que vem vindo na vaga do tempo há quase dois séculos até se espraiar em nossa época, de que é feição avassaladora.

Sua fé é tanta que, para ele, a subjetividade não implica em uma arte cuja instância é restrita, individual:

Este subjetivismo é tão livre que pela vontade independente do artista se torna no mais desinteressado objetivismo, em que desaparece a determinação psicológica.17

Além disso, nessa conferência Graça Aranha teve, como notou Wilson Martins (1921-2010),18 a primazia no emprego do termo “modernismo” entre nós. Neste belíssimo trecho:

É verdade que há um esforço de libertação dessa melancolia racial, e a poesia se desforra na amargura do humorismo, que é uma expressão de desencantamento, um permanente sarcasmo contra o que é e não devia ser, quase uma arte de vencidos. Reclamemos contra essa arte imitativa e voluntária que dá ao nosso “modernismo” uma feição artificial. Louvemos aqueles poetas que se libertam pelos seus próprios meios e cuja força de ascensão lhes é intrínseca. Muitos deles se deixaram vencer pela morbidez nostálgica ou pela amargura da farsa, mas num certo instante o toque da revelação lhes chegou e ei-los livres, alegres, senhores da matéria universal que tornam em matéria poética.19

"História da inteligência brasileira Vol. VI (1915-1933)", Wilson Martins, 1978.Graça Aranha pagando o mico de sua conversão ao modernismo...

Bem menos filosófico e bem mais específico, Menotti se coloca inequivocamente contra o academicismo, ao mesmo tempo que não vê problema algum na ausência de uma orientação monolítica, concertada e mancomunada:

O que nos agrega não é uma força centrípeta de identidade técnica ou artística. As diversidades das nossas maneiras são verificáveis na complexidade das formas por nós praticadas. O que nos agrupa é a idéia geral de libertação contra o faquirismo estagnado e contemplativo que anula a capacidade criadora dos que ainda esperam ver erguer-se o sol atrás do Partenon em ruínas.

E deixa claro o viés nacionalista, esse sim compartilhado por boa parte dos participantes da Semana:

Dar à prosa e ao verso o que ainda lhes falta entre nós: ossos, músculos, nervos. Podar, com a coragem de um Jeca que desbasta a foice uma capoeira, a “selva áspera e forte?da adjetivação frondosa, farfalhuda, incompatível com um século de economia, onde o minuto é ouro…

Nada de postiço, meloso, artificial, arrevesado, precioso: queremos escrever com sangue ?que é humanidade; com eletricidade ?que é movimento, expressão dinâmica do século; violência ?que é energia bandeirante.

Assim nascerá uma arte genuinamente brasileira, filha do céu e da terra, do homem e do mistério.20

Incidentalmente, nacionalismo não é monopólio de modernos, ele perpassa toda a nossa história ?não só política, como cultural ?desde a colônia. E estava particularmente operante no ambiente literário de então. Como esclarece Wilson Martins:

A verdade é que desde 1900, quando Olavo Bilac apontava os remadores do Flamengo como exemplo à juventude, lembrando-lhe que rapazes como aqueles haviam ganho a batalha de Salamina, o vigor físico era a forma por assim dizer concreta e sensível do nacionalismo, correspondendo simetricamente às suas manifestações intelectuais e ideológicas. O herói atlético e sadio será, dentro em pouco, uma das figuras prediletas da ficção modernista, a começar por Oswald de Andrade (em harmonia com a filosofia de vida de Graça Aranha). E, de fato, a aurora modernista começava a mostrar-se ao longe, sob as espécies de vagos clarões, ainda indecisos. Assim, por exemplo, o Estado de São Paulo anunciava para breve o aparecimento da Revista do Brasil, sob a direção de Luiz Pereira Barreto, Júlio de Mesquita e Alfredo Pujol, o que efetivamente aconteceu, em janeiro de 1916. Não há paradoxo nenhum em que um grupo ideologicamente conservador (no sentido amplo da expressão) criasse um órgão de expressão das ideias e sentimentos nacionalistas ?por onde se instituía o máximo denominador comum que havia de identificar mais tarde a Revista do Brasil com o movimento modernista.21

Mais incidentalmente, note-se que cisões entre “tradicionalistas” e “progressistas” e entre “nacionalistas” e “internacionalistas” não demorariam. Sintomaticamente, a confraria da Semana escolhe uma palavra francesa, Klaxon, para nominar sua revista…22 Novamente, com a palavra Wilson Martins:

Ainda mais expressivo é o titulo de Klaxon dado ao órgão oficial do primeiro modernismo, lembrando, talvez por coincidência, Le Klaxon, “journal humouristique, fantaisiste et mondain des tranchées”, publicado em Nancy durante a guerra; acrescente-se que, subintitulada “Mensário de arte moderna”, o anuncio inserto na terceira capa do ultimo numero indicava significativamente: “Revista internacional de arte moderna.” E internacional ela o era, com efeito, não só pelo corpo de colaboradores (onde predominavam os de língua francesa, como Roger Avermaete [1893-1988], Bob Claessens [1901-1971], Joseph Billiet, Charles Baudouin [1893-1963], Nicolas Beauduin [1881-1960], Marcel Millet, Henri Mugnier [1890-1957]), pelos brasileiros que se esmeravam em escrever na mesma língua (Serge Milliet, Manuel Bandeira) e ainda pelos pontos de referencia críticos, que eram todos franceses.23

Porém não percamos a métrica e retomemos o fio de nosso andamento.

A rigor, as lamúrias quanto à falta de uma linha propositiva da Semana têm origem no próprio Mario de Andrade (1893-1945), quem permite extrair tal interpretação da leitura do seu balanço canônico, o nosso já conhecido “O movimento modernista”, de 1942, onde insiste abusadamente na dimensão destruidora, vale dizer insensata, da Semana:

Porque, embora lançando inúmeros processos e ideias novas, o movimento modernista foi essencialmente destruidor. Até destruidor de nós mesmos… Mas nós estávamos longe, arrebatados pelos ventos da destruição E fazíamos ou preparávamos especialmente pela festa, de que a Semana de Arte Moderna fora a primeira. Todo esse período destruidor do movimento modernista foi para nós tempo de festa, de cultivo imoderado do prazer.24

Em uma apreciação de viés militante e não muito realista da era Vargas, a seu ver esse ambiente exaltado será substituído de 1930 em diante por “uma fase mais calma”, um clima construtivo de busca, aí sim consequente, de uma nova realidade social.

E no entanto, é justo por esta data de 1930 que principia para a inteligência nacional uma fase mais calma, mais modesta e quotidiana, mais proletária, por assim dizer, de construção.25

Ninguém menos do que Di Cavalcanti (1897-1976) ?consensualmente o responsável pela ideia de uma semana de apresentações artísticas como parte das comemorações do centenário da Independência ?dá testemunho do pessimismo de Mario, ao comentar em sua autobiografia:

Viagem da minha vida, E. di Cavalcanti, 1955.Oswald de Andrade e Menotti del Picchia acharam sempre que tudo que surgiu no Brasil artístico e literário depois de 1922 vem da Semana: é um exagero, como exagerada a completa desilusão de Mario de Andrade em relação à Semana.26

Pelas mãos de seu mais incensado protagonista, numa interpretação por ele em certa medida facultada, a Semana de Arte Moderna poderia ser entendida como mera explosão emocional sem rumo. Quesito em que Mario também fez escola e cobranças dessa ordem iriam se eternizar. Veja-se, por exemplo, “O jeitinho moderno brasileiro” (1993), artigo de Ronaldo Brito no qual é feito um exame da contribuição da Semana ?procedimento absolutamente lídimo.

Ao dispor sem maiores mediações ou especulações compromissos estéticos heterogêneos, a Semana repetia involuntariamente o sincretismo colonial, embora incorporasse, numa esperta manobra moderna, a dinâmica do cotidiano urbano industrial. Assim, um “estilo Léger” tropicalizado, com um astuto toque literário, adaptava-se à técnica rudimentar de Tarsila e, mediante soluções tão ousadas quanto ingênuas, vinha a ser o veículo adequado para uma pintura que procurava captar a nova mecânica social.27

A bizarrice da análise reside no fato de que, em seu afã, no mesmo embalo o autor tece críticas ?pertinentes ou não, não vem ao caso ?à habilidade pictórica de Tarsila do Amaral (1886-1973). Causa perplexidade!! A vontade de exigir da Semana o que dela ao que tudo indica seus realizadores nem pretenderam é tanta que, pasmem, vale nela encaixar a Tarsila, que sequer por lá andou, que sequer conhecia o pessoal, a ele sendo apresentada por Anita Malfatti (1889-1964) após seu regresso de Paris em junho de 1922, quando aí sim iria integrar-se ao contubérnio.28

Grupo dos Cinco, Anita Malfatti, 1922.

Não sejamos mesquinhos e deixemos de lado as picuinhas, afinal associar a Tarsila com a Semana é equívoco dos mais comuns. Inteiramente dedicado à Semana, um número da revista Cultura de 1972 ?ao qual voltaremos em um próximo capítulo… ?tem sua capa ilustrada com uma pintura… da Tarsila. E isso só se acentua: em pleno século 21, a revista Piauí mantém a tradição com artigo sobre a Semana: ilustrado com? …Tarsila. Curiouser and curiouser, referências dedicadas à Semana ilustradas com pinturas de Tarsila do Amaral, para todo o sempre hyperlinkada com a Semana…

A negra, Tarsila do Amaral, 1923.São Paulo, Tarsila do Amaral, 1924.

A questão de fundo, o que parece incomodar o Ronaldo Brito, é a inexistência de “maiores mediações ou especulações.” Traduzindo: cadê os manifestos?

Ora, os tão ansiados manifestos não haviam tardado, desde o primeiro artigo do primeiro número da Klaxon, em maio de 1922. Dentre os mais óbvios: “Poesia Pau Brasil” (1924) e “Antropófago” (1928), de Oswald de Andrade (1890-1954); “Programa do Centro Regionalista” (1926/1952), de Gilberto Freyre (1900-1987); “Grupo Verde de Cataguases” (1927), de vários autores; “Nhengaçu Verde-Amarelo” ou “Escola da Anta” (1929), Plinio Salgado (1895-1975), Menotti del Picchia, Alfredo Ellis (1896-1974), Cassiano Ricardo (1895-1974) e Cândido Mota Filho (1897-1977).29

Klaxon, no 1, maio 1922. Manifesto da Poesia Pau Brasil, Oswald de Andrade, 1924.
Verde, no 3, nov. 1927. Nheengassu da tribu verdamarella, Plinio Salgado, Menotti del Picchia, Alfredo Ellis, Cassiano Ricardo e Cândido Mota Filho, 1929.

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Parafraseando o dileto Wilson Martins, “havia numerosas moradas no mundo do modernismo.”30 Todas elas refletindo à perfeição as diferenças programáticas que então se expressavam, emergidas na esteira da Semana. Ou seja, mesmo que se desconte as conferências da própria Semana e apressadamente se aceite que ela não teve seu ínsito manifesto, foi ela quem emprenhou grande parte das ideias paridas nos manifestos que a ela se seguiram. E que no pós-1930 iriam se radicalizar em partisanismos políticos, num clima belicoso que em nada se assemelhou à leniente descrição dele feita por Mario de Andrade.

"The painted word", Tom Wolfe, 1975.É fato que esses manifestos foram vazados por poetas & Cia. E será justo cobrar o mesmo pendor para o verbo de músicos, artistas plásticos e arquitetos? Será que para ser vanguarda mais vale um bom texto explanatório, é imperioso um manifesto? Pelas reclamações, tudo indica que sim. Como nos assegura Tom Wolfe em The painted word (1975), as artes visuais no século vinte deixaram de valer em si para meramente ilustrar discursos teóricos: pintura que se respeita vem com bula…

Deixemos de lado esses preciosismos; afinal, são querelas de literatos, afeitos a disputas de ideias e hábeis com as palavras. Além do que, não temos que concordar com a autoanálise que se autoinflige Mario de Andrade. O que nos impede de nos beneficiarmos de um olhar revisionista, quiçá pós-moderno? Por que acusar a inexistência de um manifesto textual, quando o que foi oferecido em 1922 foi um magnífico manifesto performático, se menos literal, bem mais efetivo na transmissão da sua mensagem.

Aproveitando para citar mais uma vez um participante da Semana patrulheiramente expurgado de sua hagiografia devido a seu perfil político conservador, uma descrição de Menotti nos autoriza contrapor palavras e imagens:

Três noites memoráveis num ambiente elétrico: a primeira de calma e de ânsia, capitaneada por Graça Aranha. A segunda, catastrófica: eu a liderei apresentando a turma dos escritores novos ?Oswald, Mario de Andrade, Raul Bopp, Manoel Bandeira, Ronald, Ribeiro Couto e outros mais. Foi uma noite de uivos, de vaias, um inferno! Por fim coube a Ronald aguentar a plateia já descalmada, numa terceira noite espantosa, na qual só faltaram linchamentos. Mario de Andrade falou sobre musica moderna: Villa-Lobos era o corifeu…

Ao lado de toda retórica, a documentação plástica da revolução em marcha: a escultura de Brecheret, projetos de Moya, pintura da Malfatti. O “hall” do grande Teatro parecia um pátio de milagres: quadros incríveis dependurados nas paredes e troços mutilados, figuras aos pedaços em cima dos socos. E o povo a urrar, a vociferar, a injuriar… Verdadeira Semana do Terror.31

Coitada da arquitetura da Semana, coitado do Przyrembel, coitado do Moya

A Semana é um sem-fim, ela faz presença em teses, livros, artigos e mais artigos, além de comentada quando nem é o caso. Recente, de 2013, é o artigo de Luís Augusto Fischer, “Reféns da modernistolatria”. Lançando com finesse um olhar instigante sobre a velha senhora (o que é coisa rara), o autor pede um pouco mais de comedimento com o tal “espólio modernista paulista”, uma vez que,

depois de estabilizada como Fato Incontornável, a Semana de Arte Moderna paulista pode tudo. Inclusive acumular méritos que não lhe são próprios… E toda aquela novidade gritante, no plano dos enunciados artísticos, passou a ser mastigada, incansavelmente, no cotidiano escolar de todas as salas de aula Brasil afora, pelos manuais de ensino preparados já pela visão modernistocêntrica.

Fechado este abraço que a força histórica comandada por São Paulo ia dando, nada restou fora de seu alcance: o modernismo, aquele exclusivamente ligado à Semana de 22 segundo a depuração que podemos chamar, sem maior rigor, de tropicalista (que excluiu os Menotti del Picchia e os Graça Aranha do cenário), o modernismo agora era a lente certa e única para ler tudo, do começo ao fim: da formação colonial, agora ressubmetida a avaliação, até o futuro, que já tinha sido alcançado e era, então, mera decorrência do que já estaria, para sempre, previsto e mesmo desempenhado pelos mártires do novo panteão. O mundo da invenção estética brasileira passou a viver essa aporia conceitual ?tudo que vale é modernista, sendo que o modernismo ao mesmo tempo já aconteceu e é a coisa mais moderna que se pode conceber ? aporia cuja figuração banal aparece nos livros escolares e na crítica trivial com a patética sequência de termos pré-modernismo>modernismo>pós-modernismo, tomados como capazes de descrever tudo que o século XX (o XXI também, claro) já produzira, produzia e viria ainda a produzir. Essa aporia foi plenamente aceita e até naturalizada: todas as tentativas de invenção, em todos os campos, daí por diante, seriam quando muito atualizações de propostas ou de ações ou de desejos já plenamente configurados ou em Mário ou em Oswald. Fora disso, tudo era regressivo, conservador, caipira, regionalista, qualquer coisa assim de péssimo.32

Concordo, meu caro Luís Augusto, nada mais justo, porém não adianta chiar! Até a revista i., do requintado Shopping Iguatemi, traz, obviamente em um ano final 2, número dedicado à Semana. Um desses anacronismos que pululam no seu mapa astral, o artigo denominado “Tupi or not Tupi”33 ?manjadíssimo trocadilho do “Manifesto Antropofágico”,34 que veio à luz, como sabem todos, em Piratininga, no Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha, ou seja, seis anos depois da Semana ?informa os incautos que a Semana é muito bem recebida pelos “amantes da estética vintage.”

"revista i", edição 47, 2012."Prefácio interessantíssimo", Patrícia Favalle.

Em mais uma indesculpável digressão, vale apontar que nas últimas décadas vem crescendo a atenção dada à dupla Tarsila & Oswald, isto apesar da conturbada separação. Pelas mãos de seus cultores, esses dois personagens vêm de mansinho abocanhando a Semana, ela que lá nem estava, ele que, ao que parece, não desempenhou papel tão destacado assim, tendo sido mais agent provocateur do que protagonista. E, à medida que crescem seus papéis, vai saindo de cena o descartável Menotti, e até mesmo Mario perde a realeza.

Entre páginas e mais páginas de bolsas de grife, perfumes de grife, homens e mulheres de grife, pomadas e sabonetes de grife, diamantes de grife e o escambau de grife, em meio ao requinte da parafernália do consumo do establishment, noventa anos depois brilha domesticada a Semana. A Semana é vintage! Aliás, a Tropicália também é vintage. E a quatrocentona São Paulo, então, mais vintage impossível…

A música e os músicos da Semana, a poesia e os poetas da Semana, a pintura e os pintores da Semana, a escultura e os escultores da Semana, todas e todos aclamados, todas e todos esteticamente corretos. Repetindo o dito de Luis Augusto: “tudo que vale é modernista, sendo que o modernismo ao mesmo tempo já aconteceu e é a coisa mais moderna que se pode conceber.”

A gente escreve o que ouve ?nunca o que houve.

Só a arquitetura da Semana e seus arquitetos ?Georg Przyrembel (1885-1956) e Antonio Garcia Moya ?é que não emplacaram.

E por que não? É justamente para esta pergunta, quando feita aqui no mundinho arquitetônico, que não tenho encontrado boas respostas. Como já deu para perceber, mal se fala da arquitetura da Semana. Aliás, nem se falava dela até princípios da década de sessenta, esquecida, por exemplo, em Duas arquiteturas no Brasil (1961), de Benjamin de Carvalho. E quando se falava, era para recorrentemente taxá-la de inexpressiva, se não de equivocada.

Flavio de Aquino e Paulo Santos

O primeiro que encontrei que se refere à sua presença na Semana é Flavio de Aquino (1919-1987). Em “Os primórdios do modernismo no Brasil” (1961), com certeza tendo o Antecedentes da Semana de Arte Moderna (1958), do Mario da Silva Brito, como principal fonte impressa, o autor faz uma breve revisão do que aconteceu da exposição de Anita em 1917 ao “estrondo violento” da Semana. Inaugurando a versão que se tornaria lugar-comum, Moya é apresentado já lastimavelmente descontextualizado; Przyrembel, este nem é digno de menção:

Em realidade, a renovação era mais sentida e praticada no campo da literatura que nos das artes plásticas. Serve de exemplo o fato de que um dos componentes da Semana de 22, o arquiteto Antonio Moya projetava edifícios em estilo neomanuelino.35

Que Moya tenha realizado casas em estilos variados, isso é inegável, ainda que eu não tenha encontrado nenhuma “neomanuelina” propriamente. Paradigmático do gótico português ?o chamado estilo manuelino ?é o Mosteiro de Belém, mas Moya era mais afeito a um gótico de sabor italiano, como aquele que empregou na Residência João Miguel Sanches, à avenida Paulista, infelizmente já demolida.36

"Noticia Historica e Descriptiva do Mosteiro de Belem", Francisco Adolfo de Varnhagen, 1842.

Residência João Miguel Sanches, Moya & Malfatti, 1942.

Residência João Miguel Sanches, Moya & Malfatti, 1942.

"Quatro séculos de arquitetura", Paulo F. Santos, 1977.Mesmo assim, independente de tê-lo feito bem depois de 1922, esse fato em nada diminui sua competência ?uma vez que são projetos de elevada qualidade ?e em nada detrata dos projetos que constituíram sua presença na Semana.

Poucos anos depois é a vez das palavras bem típicas de Paulo Santos (1904-1988) em “400 anos de arquitetura” (1965). Apesar da cabal ausência de fontes, e além da queixa de sempre quanto à falta de uma agenda (já sabemos, de um manifesto), a coitada da arquitetura mereceu apenas um “quase” presente:

O surto Moderno… só adquiriu o sentido de um Movimento com a Semana de Arte Moderna…

O Movimento ?de que a arquitetura esteve praticamente ausente (ou quase) ?germinou nos salões paulistas e teve expressão predominantemente literária. Vago, impreciso, não tinha programa, não defendia uma tese.37

Mais adiante, radicaliza na apreciação, deixando-a deterministicamente sem importância. Para variar, note-se a inclusão da Tarsila, ainda que com a devida ressalva:

Se a pintura e a escultura modernas no Brasil tiveram nos artistas da Semana ?Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Brecheret, depois Tarsila (de algum modo ligada à equipe da Semana) ?os iniciadores de um movimento de renovação, a arquitetura moderna do Brasil, melhor: a arquitetura contemporânea do Brasil deixa à margem a Semana ou ignora a Semana, filiando-se diretamente à Le Corbusier.38

Este trecho bem exemplifica a construção, em andamento desde a década de trinta no Rio de Janeiro, da mui conveniente distinção entre “arquitetura moderna” e “arquitetura contemporânea” em resposta a críticas de diferentes matizes entorno da cansativa dicotomia “nacional vs internacional”.

No mais é silêncio… Até que Antonio Garcia Moya ressurge. E ressurge classificado, rotulado, (des)qualificado e quantificado, para sempre “selado, registrado, carimbado” como personagem irrelevante, sequer um coadjuvante no enredo central da história da arte brasileira.

Yves Bruand

"Arquitetura contemporânea no Brasil", Yves Bruand, 1981.Um dos primeiros que contribuiu para tal parece ter sido Yves Bruand, quem deve ter repetido ?na minha opinião e inadvertidamente ?algum julgamento que lhe foi transmitido por estas plagas.39 Se assim se passou, isso deve ter ocorrido durante sua estadia como professor na Universidade de São Paulo entre 1960 e 1969,40 período em que levou a cabo as pesquisas que redundariam em sua magistral ?e no geral acurada ?tese de doutorado L’architecture contemporaine au Brésil (1973).41

Não encontro outra explicação, uma vez que sobre a Semana e sobre Moya, Bruand dá uma única fonte. E esta, como sempre, o elogioso Antecedentes da Semana de Arte Moderna. Até os textos dos Andrade e de Menotti que cita vêm daquele livro…

Para deixar bem claro o que vai se passar, considere-se o que diz nosso informante de sempre, Mario da Silva Brito:

Mas, outros fatos, dignos de registro, ocorrem em 1921, que é ano rico de acontecimentos. Fatos que aceleram a evolução do movimento e o levam a culminar na Semana de Arte Moderna.

O grupo modernista já está constituído, por esse tempo, em sua quase totalidade. Não só praticamente constituído, como também subdividido de acordo com as vocações de seus diversos componentes. Poetas são Mario de Andrade, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Agenor Barbosa e Plínio Salgado. Menotti e Oswald de Andrade são romancistas. Na crítica, sustentando a polêmica, estão Mario de Andrade, Oswald, Menotti, Cândido Motta Filho e, com menor desempenho, Sergio Milliet. A pintura conta com Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro e John Graz, já sagrados nas batalhas antiacadêmicas e feridos pela crítica conservadora. A escultura apresenta um grande nome: Victor Brecheret. Armando Pamplona, interessado em cinema, acompanha o grupo, e está, quase sempre, ao lado de Menotti del Picchia. Nesse ano, é descoberto um arquiteto “bizarro, original, cheio de talento, sonhando e realizando coisas enormes”: Antonio Moya

Estão aí citados alguns dos “Dragões do Centenário”, como Mario de Andrade chamava aos integrantes das hostes modernistas. Mais alguns nomes, acrescentados a estes, comporão o grupo que vai aparecer no saguão e no palco do Municipal durante a Semana de Arte Moderna.42

E atente-se no que isso vai dar. Inicialmente, Bruand destaca a relevância do neocolonial como vestíbulo da modernidade:

Esse movimento [o estilo neocolonial] foi na realidade a primeira manifestação de uma tomada de consciência, por parte dos brasileiros, das possibilidades do seu país e da sua originalidade. Já assinalamos anteriormente [p. 25 e ss.] a importância desse fenômeno sem o qual a arquitetura brasileira não seria hoje o que é.43

No que segue o entendimento de Paulo Santos:

Nem pelo que tinha de negativo deixou o Neo-Colonial de ter a sua significação ?e não apenas como expressão da sensibilidade romântica da época, mas como fato positivo, já que teria paradoxalmente influído no próprio movimento dito Moderno e para a criação de condições propícias ao estudo de questões de raça, costumes, economia e vida social e artística do nosso povo.44

E não aquele de Lucio Costa, para quem o neocolonial ?em sua ótica de 1951, depois de tê-lo praticado por boa parte da década de vinte ?nada mais era do que

o artificioso revivescimento formal do nosso próprio passado, donde resultou mais um “pseudo-estilo”45

"Por uma história não moderna da arquitetura brasileira", Marcelo Puppi, 1998.Conforme bem sintetiza Marcelo Puppi:

O capítulo de Bruand dedicado às três primeiras décadas do século é em grande parte uma superposição de ideias retiradas de Lucio Costa e de Paulo Santos, adaptando-as a seus propósitos. Do autor de Documentação necessária [Costa], ele retém sobretudo… o panorama de conjunto da arquitetura brasileira esboçado neste texto e a consequente desvalorização do “decorativismo” eclético. Do autor de Quatro séculos de arquitetura [Santos], ele absorve, principalmente, a simpatia pelo neocolonial (bem como a defesa da influência do movimento sobre a arquitetura moderna)…46

Bruand ressalta, inclusive, a contribuição do substrato modernista paulistano:

Assim como evidentemente os estilos históricos não desaparecem de um momento para o outro, o movimento “moderno” não surgiu repentinamente. Por mais que assim possa parecer, ele é no entanto resultado da evolução do pensamento de alguns grupos intelectuais brasileiros, especialmente paulistas, evolução esta que criou um mínimo de condições favoráveis…47

Contudo, quando aborda de fato a Semana, não se contém e retoma a batida cantilena, ecoando Mario de Andrade:

Na realidade, seus participantes não tinham nenhum programa coerente. O denominador comum era sobretudo de natureza negativista e demolidora: a ruptura com o passado e a independência cultural frente à Europa… eram os dois pontos fundamentais, de uma clareza por sinal ilusória…

A prova mais evidente da falta de coerência da Semana, enquanto conjunto de propostas de vanguarda, estava na sessão consagrada à arquitetura. Os organizadores contavam com grande número de literatos, quatro pintores (Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro e o suíço John Graz), um escultor (Brecheret), um compositor (Villa-Lobos): era também necessário um arquiteto para que a exposição fosse completa48

Ignorando Przyrembel como fez Flavio de Aquino, no mesmo fôlego, extrapola:

Recorreram, então, a um espanhol radicado em São Paulo, Antonio Garcia Moya, autor de casas inspiradas na tradição mourisca espanhola, que, em suas horas livres, colocava no papel desenhos de uma arquitetura visionária que agradava aos futuristas por sua fisionomia extravagante. Nada de válido poderia daí resultar e torna-se difícil caracterizar melhor a diferença entre o caráter puramente especulativo e gratuito dos projetos visionários, fortemente marcados por um cunho passadista e as necessidades concretas, que o arquiteto jamais pode abandonar… Portanto, de um ponto de vista objetivo [sic], não exerceu a Semana de Arte Moderna qualquer influência direta sobre a arquitetura.

Do nada, sem documentação e iconografia de apoio, sem sequer provas do crime estava passada a sentença: Moya se esgueirando sorrateiro pelo Teatro Municipal, estrangeiríssimo, conhecedor da arquitetura mourisca talvez por ter nascido na Espanha e tê-la incorporado via algum jungiano inconsciente coletivo, extravagante e meramente especulativo e gratuito, por conseguinte sem fundamento na realidade, além de ?horribile dictu ?passadista. Desfeito o mistério sobre quem o havia qualificado de visionário, descobrimos também que é um diletante, trabalha nas horas livres…

Fica no ar a pergunta: afinal, o que fazia nas demais horas, qual seu real metier, como ganhava a vida o tal forasteiro?

O tom empregado, bastante distante do comedimento habitual de Yves Bruand, reforça a sugestão de que fora influenciado por algum de seus interlocutores, muito provavelmente um paulista. Curiosamente, muitos anos depois, em depoimento sobre Lucio Costa, descreve-o em termos muitos semelhantes, no entanto agora com empatia:

Sua modéstia me impressionara igualmente; ele apresentava-se um pouco como um arquiteto que trabalhava somente em suas horas vagas, por prazer, quando suas funções no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) lhe permitiam. 49

Testemunhamos nessas duas passagens a aura de prestígio ?ou seu indeferimento ?em gestação.


Leia também:

Antonio Garcia Moya, um arquiteto da Semana de 22:

Parte 1 ou pro Mario, o Moya era moderno?/a>
por Sylvia Ficher

1922: quando o moderno não era um estilo, e sim vários
Editorial
por Danilo Matoso Macedo


Notas

* Neste segundo tempo contei, além dos já citados Danilo Macedo e Eduardo Rossetti, com informações de Aracy Amaral, Paulo Emílio Vanzolini, Sophia Silva Telles e Thomaz Simões. Andrey Schlee foi um leitor cheio de sugestões.? class=

  1. Em Ilustração Brasileira, ano VIII, no 4, dez. 1920; apud Telê Ancona Lopez (org.), De São Paulo: cinco crônicas de Mário de Andrade, 1920-1921, 2004, p. 81.? class=
  2. Mário da Silva Brito, Notas para a história do modernismo brasileiro, Anhembi, no 40, mar. 1954 e ss., até no 51, fev. 1955.? class=
  3. Apud Maria Eugenia Boaventura (org.), 22 por 22, a Semana de Arte Moderna…, 2008, pp. 399-400, pp. 417-18 e pp. 421-22, respectivamente, os dois últimos incluídos apenas em português.? class=
  4. Em Lumière, Anvers, ano III, no 7, 15 abr. 1922; apud Boaventura, op. cit., 2008, p. 129-34, igualmente apenas em português.? class=
  5. Menotti del Picchia, 1922-1932: A revolta dos intelectuais, Folha da Manhã, 15 jan. 1932, apud Jácomo Mandatto, Menotti del Picchia, a “Semana” revolucionária, 1992, p. 27.? class=
  6. Menotti del Picchia, A “Semana” revolucionária, A Gazeta, 9 fev. 1952, apud Mandatto, p. 33.? class=
  7. Philip L. Goodwin, Brazil builds: architecture new and old 1652-1942, ou Construção brasileira: arquitetura moderna e antiga 1652-1942, 1943.? class=
  8. Lourival Gomes Machado, Retrato da arte moderna do Brasil, 1947, p. 81.? class=
  9. Idem, ibidem.? class=
  10. Lucio Costa, Carta-depoimento, O Jornal, 20 fev. 1948; republicado in Lucio Costa, Sobre arquitetura, 1962, pp. 123-24.? class=
  11. Lucio Costa, Muita construção, alguma arquitetura e um milagre, Correio da Manhã, Caderno Urbanismo e Construções, pp. 1, 9 e 15, 15 jun. 1951; republicado em 1952 como Vol. 5 d’Os Cadernos de Cultura sob o título Arquitetura brasileira, aqui citado (pp. 29-30).? class=
  12. Mario Barata, A arquitetura brasileira dos séculos XIX e XX, p. 11, separata de Aspectos da formação e evolução do Brasil, 1952.? class=
  13. Idem, ibidem.? class=
  14. Henrique Mindlin, L’architecture moderne au Brésil, 1956, p. 4. Publicado no mesmo ano em inglês, no ano seguinte, em alemão, e apenas em 1999 em português.? class=
  15. Esses textos são facilmente encontrados; aqui a fonte foi Gilberto Mendonça Teles, Vanguarda européia e modernismo brasileiro, 2012 (20ª ed. ampliada; 1ª ed., 1972), pp. 409-16 e 417-24 respectivamente.? class=
  16. Idem, pp. 411-12.? class=
  17. Em História da inteligência brasileira (1915-1933), v. 6, 1978, pp. 239-40.? class=
  18. Mendonça Teles, op. cit., p. 413.? class=
  19. Idem, pp. 418-19 e 422; grifo meu.? class=
  20. Martins, op. cit., p. 28.? class=
  21. Periódico editado de maio de 1922 a janeiro de 1923 pelos literatos de sempre ?Mario, Menotti, Oswald, além de Manoel Bandeira (1886-1968), Guilherme de Almeida (1890-1969), Sérgio Milliet e alguns amigos suíços deste último (Lisbeth Rebollo Gonçalves, Sérgio Milliet, crítico de arte, 1992, pp. 24-25). Para o n. 1, //www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/01005510; série incompleta disponível em //www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/62.? class=
  22. Martins, op. cit., p. 277.? class=
  23. In Mario de Andrade, Aspectos da literatura brasileira, 1972, pp. 240-41.? class=
  24. Idem, p. 242.? class=
  25. Emiliano di Cavalcanti, Viagem da minha vida I ?o testamento da alvorada, 1955, p. 120.? class=
  26. In Ronaldo Brito, Experiência crítica, 2005, p. 135; grifo meu.? class=
  27. Aracy Amaral, Tarsila, sua obra e seu tempo, 1975, v. 1, p. 46.? class=
  28. Novamente, a fonte é Mendonça Teles, op. cit. Para o “Programa do Centro Regionalista” é aconselhável consultar o texto integral conforme apresentado por Freyre em 1951 e publicado em 1955 já com o título de Manifesto regionalista de 1926.? class=
  29. Martins, op. cit., p. 156: “Vemos que havia numerosas moradas no mundo do nacionalismo.”? class=
  30. Menotti del Picchia, Como aconteceu a Semana de Arte Moderna, artigo sem data transcrito em Mandatto, op. cit., p. 67.? class=
  31. Luís Augusto Fischer, Reféns da modernistolatria, Piauí, no 80, pp. 60-63, maio 2013; //revistapiaui.estadao.com.br/edicao-80/questoes-de-literatura-cultura/refens-da-modernistolatria? class=
  32. Paula Queiroz, Tupi or not Tupi, revista i, edição 47, pp. 160-63, 2012.? class=
  33. Oswald de Andrade, Manifesto antropófago, Revista de Antropofagia, ano I, no 1, maio 1928. Pode ser encontrado, como de hábito, in Mendonça Teles, op. cit., pp. 497-506, e //www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/060013-01.? class=
  34. Flavio de Aquino, Os primórdios do modernismo no Brasil, Módulo, no 22, pp. 32-34, abr. 1961; republicado in Alberto Xavier (org.), Depoimento de uma geração, 1987, aqui citado, pp. 10-13.? class=
  35. Moya & Malfatti, Acrópole, no 49, p. 25-28, maio 1942.? class=
  36. Paulo F. Santos, 400 anos de arquitetura, in Universidade do Brasil, Quatro séculos de cultura, 1966. Aqui citada a edição em livro: Quatro séculos de arquitetura, 1977, p. 104.? class=
  37. Idem, p. 106.? class=
  38. No momento estou à caça de quem poderia ter sido este informante. Entretanto minhas suspeitas ainda não foram suficiente comprovadas, razão pela qual me calo. Mas aceito sugestões!!? class=
  39. Yves Bruand, Lucio Costa: o homem e a obra, in Ana Luiza Nobre et alii, Um modo de ser moderno: Lucio Costa e a crítica contemporânea, 2004, p. 13.? class=
  40. Em Por uma história não moderna da arquitetura brasileira (1998), Marcelo Puppi expressa opinião algo semelhante: “Bruand apresenta de fato ao leitor um útil manual sobre a história da arquitetura contemporânea no Brasil, sem similar nacional e até agora insuperado” (p. 100).? class=
  41. Mario da Silva Brito, Antecedentes da Semana de Arte Moderna, 1958, pp. 278-79; grifo meu.? class=
  42. Yves Bruand, Arquitetura contemporânea no Brasil, 1981, p. 52.? class=
  43. Paulo F. Santos, op. cit., 1977, p. 104.? class=
  44. Lucio Costa, op. cit., 1952, p. 22.? class=
  45. Puppi, op.cit., p. 107.? class=
  46. Bruand, op. cit., 1981, esta citação e seguintes: pp. 61-63, grifos meus.? class=
  47. Há, na nota (14) que consta neste trecho do texto de Bruand um equívoco menor, fruto talvez até da tradução: nela consta referência a artigo de Menotti que teria revelado Moya ao “grande público”, dando sua data como 20 de julho de 1927, quando o ano correto é 1921.? class=
  48. Bruand, op. cit., 2004, p. 13.? class=

Sylvia Ficher
Doutora em história pela FFLC/USP, com pós-doutorado em sociologia na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris), e professora da FAU/UnB. É autora de Arquitetura Moderna Brasileira (1982), com Marlene Milan Acayaba; GuiArquitetura de Brasília (2000), com Geraldo Nogueira Batista; Os Arquitetos da Poli (2005), agraciado com o Prêmio Clio, da Academia Paulistana de História; e Guia de obras de Oscar Niemeyer: Brasília 50 anos (2010), com Andrey Schlee. sficher@unb.br

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pro Mario, o Moya era moderno…

Sylvia Ficher

 *

Já um crítico de senso-comum afirmou que tudo quanto fez o movimento modernista far-se-ia da mesma forma sem o movimento. Não conheço lapalissada mais graciosa. Porque tudo isso que se faria, mesmo sem o movimento modernista, seria pura e simplesmente… o movimento modernista.

Mario de Andrade, O movimento modernista 1942.[1]

Arquiteto, artista, renovador, [Antonio Garcia Moya] inscreveu, no setor da arquitetura, seu nome na galeria da Renovação da Arte Brasileira, participando da Semana de Arte Moderna de 1922, como representante único da arte que deveria, depois, dar ao Brasil os nomes gloriosos de Warchavchik, Niemeyer, Artigas e outros consagrados modernistas.

… Ao seu espírito vanguardista se deve o primeiro grito de renovação da arquitetura brasileira….

De tal forma sua arte renovadora e variada se impõe à admiração de sua geração, feira de iluminados libertadores da Arte Brasileira, que foi denominado pelo maior crítico do seu tempo, Mario de Andrade, o Poeta da Pedra.

Menotti del Picchia, homenagem póstuma em 1949.[2]

Prelúdio

Como se percebe, o subtítulo deste artigo pretende-se uma provocação. Provocação ao sentido corrente de qual seja a “arquitetura do movimento moderno”. Igualmente provocação ao sentido corrente de qual seja a “arquitetura moderna brasileira” ou, como prefere Lucio Costa (1902-1998), a “arquitetura contemporânea brasileira”, esta sutil porém intencionalmente modificada por Yves Bruand para “arquitetura contemporânea no Brasil.”[3]

Já o seu desenvolvimento e corpo são mais comedidos. Nele pretende a autora expor algumas das suas perplexidades no intuito de contribuir para uma reflexão sobre tais entendimentos, reflexão esta que talvez possa sugerir outras possibilidades interpretativas.

Aqui e agora, gostaria de falar de um arquiteto pouco lembrado, menos ainda estudado, Antonio Garcia Moya, nascido em Atarfe, na Andaluzia, Espanha, a 21 de maio de 1891, e falecido em São Paulo, a 19 de junho de 1949. No mais das vezes, é evocado tão somente por ter sido um dos dois arquitetos que participaram da Semana de Arte Moderna em 1922. E dessas evocações, fica-se com o vago sentimento que a sua participação em tão icônico evento se deu sem maior procedência, como que ao acaso, ele por lá se imiscuindo…

É tal impressão que gostaria de abrandar com uns poucos fatos que a contrariam. Isto bem lá adiante, contudo, pois nosso andamento será pausado.

Apenas para dar o tom, considere-se que Moya estava em contato próximo com Victor Brecheret (1894-1955), desde de que este retornara ao Brasil em 1919 e, graças ao apoio de Francisco Ramos de Azevedo (1851-1928), instalara seu atelier numa sala do Palácio das Indústrias (1911-1924), então em construção.

E o arquiteto teria influenciado o escultor, como sugere Aracy Amaral:

Extremamente bem desenhados, um mestre no nanquim, dentre os trabalhos que conhecemos de Moya, um há que nos intriga em particular. Trata-se de um Túmulo, de linhas modernas em seu despojamento e síntese, encimado pelo busto de um índio hercúleo. Já nos referimos, em outra parte [não encontrei tal referência], à possibilidade de influência de Moya sobre Brecheret, tendo o escultor ítalo-brasileiro alterado bastante o seu estilo na sua estada em São Paulo, de volta de Roma. O suave expressionismo muscular de Brecheret, com efeito, cederia lugar à estilização e à linearidade nesses anos em que aqui trabalhou e antes, portanto, de seu retorno a Paris. Muito receptivo, não parece difícil ter Brecheret se interessado pelos trabalhos de Moya. O contato entre os dois foi efetivo, tendo Moya realizado a parte arquitetônica do projeto do Monumento às Bandeiras de Brecheret, ocasião que teria possibilitado evidente troca de opinião e conhecimento mútuo. Neste índio está bem patente a estilização que seria mais tarde definida como tipicamente de Brecheret, por este utilizada em vários trabalhos, mas de maneira definitiva no Monumento às Bandeiras inaugurado em 1954. Essa estilização imponente e linear, projetando de forma sintética o modelado majestosos do tórax dessa figura, está, sem dúvida, bem próxima de Brecheret do Monumento de 54, assim como distante das figuras musculosos e plenas de jogos de luz e sombra do primeiro projeto recusado.[4]

Mas recuemos no tempo. Sem a presunção de fazer uma história geral de São Paulo e da sua arquitetura nas duas primeiras décadas do século vinte, há algumas informações de contexto que são úteis para situar melhor a obra deste espanhol apenas de nascimento, uma vez que lá radicado desde os quatro anos de idade, em 1895.[5]

Uma pequena amostra de São Paulo da década de 1910:

No que se refere à cidade propriamente, é bom atentar para o fato que, avançado o século dezenove, ela não era muito mais do que um vilarejo, para não dizer uma parada de mulas. Quando do primeiro censo demográfico realizado no Brasil, em 1872, ocupava um modesto nono lugar entre as nossas capitais. Trinta anos depois, em 1900, já havia se tornado a segunda maior cidade do país. E estava iniciando seu avanço em direção ao topo, pole position que alcançaria ao longo da década de cinquenta.

Vejamos o que ocorria em termos de arquitetura na São Paulo de a meio caminho nessa escalada.

No ensino, duas escolas superiores ofereciam formação em arquitetura, a Escola Politécnica desde 1899, e a Escola de Engenharia do Mackenzie, a partir de 1917; e havia, já tradicional na cidade, o Liceu de Artes e Ofícios, oferecendo cursos diversos, inclusive de desenho arquitetônico e de construção. Na corporação institucionalizada, a pauta era a sua regulamentação pela máxima valorização do diploma de estudos superiores, ainda que esse objetivo não fosse somente dos arquitetos. Na verdade, era mais uma agenda dos engenheiros civis. Os demais engenheiros e os seus primos pobres arquitetos apenas iam no vácuo da mobilização, justamente para conseguir garantir um naco das atribuições profissionais, as quais os civis queriam abocanhar no todo.

O campo profissional, em si, estava ocupado majoritariamente por Ramos de Azevedo. Algo assim como o que ocorria então no Rio de Janeiro com Heitor de Mello (1875-1920) e ocorre em Brasília com Oscar Niemeyer (1907), o Ramos exercia com mão de ferro um monopólio quase absoluto sobre as grandes obras cívicas. Tudo que era edifício importante na cidade era dele, isso sem contar sua vasta carteira de obras particulares. E não se tratava apenas de projetos; naquela época arquitetura era sinônimo de construção: o seu escritório projetava e construía, só projetava ou só construía, dependendo da ocasião, em um negócio bem mais lucrativo do que só projetar.

Em termos artísticos, as posições em confronto eram menos difusas do que hoje. Acima de tudo, a cena ?que não era lá das mais espaçosas ?estava dominada pelos ecléticos. Desses, o Ramos e seus projetistas ?como o Max Hehl (?-1916), o Domiziano Rossi (1865-1920) ou o Felisberto Ranzini (1881-1976) ?eram os de maior visibilidade, exercendo assim também uma forte hegemonia estética, acatada por outros profissionais em firmas semelhantes, porém de menor porte.

Há o ecletismo do Ramos de Azevedo:

   

E há o ecletismo dos demais:

   

O movimento tradicionalista

Mas algo novo vinha despontando no horizonte ?que tomaria vulto a partir de 1922, com a comemoração do centenário da Independência. Estou me referindo ao neocolonial, naquela época chamado de “tradicionalismo” ou “colonialismo” ?este último termo ainda não tendo tomado a conotação política negativa atual.

O tradicionalismo não só tem seus pressupostos e realizações objeto de poucas pesquisas, como quase todos os seus estudiosos sofrem de um esquisito complexo de inferioridade. Numa linha de denegação oposta à benevolência historiográfica para com o modernismo, eles parecem estar pedindo desculpas por abordar algo tão desimportante, para não dizer ruim…

Ao percorrermos o inclusivo livro organizado por Aracy Amaral, Arquitectura neocolonial: América Latina, Caribe, Estados Unidos (1994), nos deparamos com sintomas do conflito. Exemplar é o capítulo dedicado ao Brasil, “El estilo que nunca existió”, de Carlos Lemos. Após reduzir o neocolonial a um “historicismo”, termo por ele usado pejorativamente, sua honestidade de pesquisador o obriga a apontar que:

Sin embargo, lo más interesante de todo es que la variante ecléctica historicista lanzada por Severo al sugerir el “estilo colonial” agradó a todos los gustos y se popularizó, inclusive, en el ámbito de la arquitectura sin arquitectos?a id="_ednref7" href="#_edn7">[6]

Este é um aspecto importante da questão. Ao menosprezarmos por preconceito estético os estilos neocoloniais, concomitantemente desqualificamos o imenso acervo de obras neles realizadas e não levamos em consideração a variedade de programas em que são empregados. E negligenciamos a riqueza de significados que essas edificações evocam, as suas qualidades construtivas, o seu valor artístico e a sua relevância ideológica e, não menos, o agrado que causavam e ainda causam. Basta percorrermos mais uma vez o livro da Aracy com olhos generosos, para logo sermos seduzidos.

Seja como for, na receita do tradicionalismo há ingredientes díspares. Melhor conhecidos, graças a Joana Mello, são os ideais republicanos de Ricardo Severo (1869-1940), engenheiro português radicado no Brasil e desde 1908 um dos sócios justamente do Ramos de Azevedo.[7]

   

Veja-se alguns poucos exemplos da década de 1920:

 
 

Tateando ainda, porém ganhando musculatura também de 1920 em diante, quando ocorre o seu primeiro congresso, há a bem menos pesquisada influência da Federação Panamericana de Arquitetos, espaço de proselitismo do uso de estilos “americanos”.[8] Esta estará difundido experiências revivalistas em curso por todas as Américas, frutos arquitetônicos tardios da então centenária Doutrina Monroe.

Não vou me referir ao tradicionalismo latino americano ?movimento forte por todos os seus países ?dado o meu incipiente conhecimento sobre o assunto. Já para a América do Norte sinto-me mais a vontade. De alto nível de qualidade e muito agradável foi o intenso emprego de estilos coloniais hispânicos nos Estados Unidos desde as últimas décadas do século dezenove, evidentemente mais difundidos na Flórida e na costa oeste.

Veja-se, como aperitivo, alguns exemplos do revival dos estilos misiones de California e renascença espanhola.

Nessas confluências temporais bastante comuns na história da arte, enquanto artigos e conferências de Ricardo Severo, realizados entre 1911 e 1916 ?com especial destaque para as conferências “A Arte Tradicional no Brasil” e “A Casa e o Templo”, proferidas na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo em 1914 ?têm sido apontados como o marco inicial do tradicionalismo brasileiro, a Exposição Panamá Califórnia, em San Diego ?cuja construção teve início em 1911, sendo aberta em 1915 ?tem sido considerada o apogeu do tradicionalismo estadunidense.

De qualquer modo, o neocolonial será longevo ?se é que já tenha desaparecido ? com importantes obras nas décadas de 1930 e 1940.

 

 

 

O nativismo

Precursor mesmo entre nós nesse rumo nativista é um outro olvidado, o paraense Theodoro José da Silva Braga (1872-1953), bem como a sua pregação por uma arte decorativa baseada em motivos tirados da fauna e flora brasileira.[9]

Foi Theodoro Braga o predestinado descobridor pictural, espantando o nosso esnobismo com a estilização da flora e da fauna, em uma sadia compreensão nacionalista, de que tão insensata e barbaramente nos temos afastado na arte[10]

Pregação essa expressa tanto em suas atividades de professor e escritor como em suas obras, tendo mesmo criado um sistema ornamental inspirado na cerâmica marajoara, legitima arte pré-colombiana. Para sua pintura mais conhecida, A Fundação da Cidade de Nossa Senhora de Belém do Grão-Pará, de 1908, executou moldura com motivos decorativos tirados da flora regional. De fácil acesso graças à internet, veja-se o seu artigo “Estilização nacional de arte decorativa aplicada”, de 1921.[11]

Olvidado também ficou o seu estilo marajoara, empregado no tão malfadado projeto vencedor do concurso do Ministério da Educação, de Archimedes Memória (1893-1960), preservado contudo nas fotos da residência de Theodoro Braga publicadas na Revista de Engenharia Mackenzie, projeto de Eduardo Kneese de Mello (1906-1994).[12]

 

E há precedentes de outra ordem. Veja-se a polêmica entre Francisco Bethencourt da Silva (1831-1911), egresso da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, e Luiz Schreiner (1838-1892), formado na Real Academia de Belas-Artes de Berlim, quanto à possibilidade de constituição de uma arquitetura autóctone brasileira.[13]

Polêmica da qual conhecemos melhor as opiniões deste último, conforme expostas em seu livro As obras da nova Praça do Commercio (1884). Pelo que se depreende da leitura, Bethencourt da Silva teria acusado Schreiner ?encarregado de construir o seu projeto para a terceira Praça do Comércio, atual Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio ?de trazer técnicas europeias inadequadas ao nosso clima e cultura, como o estuque ou a alvenaria de tijolos queimados. E teria insistido no uso de soluções construtivas tradicionais luso-brasileiras de pedra e madeira.

Partindo do pressuposto de que estilos são criações do passado, próprios de sociedades fechadas e tomando uma postura anti-nativista, Schreiner replicou em discurso proferido no Instituto Politécnico Brasileiro em 1883:

Há pessoas que, intitulando-se arquitetos, sonham com a criação de um novo estilo arquitetônico essencialmente brasileiro, e julgam-se predestinados pela Providência para inventar o que não se pode inventar e nunca foi inventado... Pretender criar uma arquitetura essencialmente brasileira equivale a pretender isolar o Brasil do mundo inteiro por uma muralha chinesa.[14]

Abrindo de vez o leque, será que não poderíamos considerar a Candelária, no Rio, como um exemplo precoce de neocolonial, portanto de nativismo?

O art-déco

Correndo por fora, antes mesmo da primeira grande guerra, apontava na Europa uma estética de natureza muito diversa, menos preocupada com ideologias e tendo entre suas características mais marcantes, seja nas artes plásticas, seja na arquitetura, uma estilização geometrizada da figuração, quando não uma definitiva abstração geométrica. Estética que só seria batizada de art-déco quando já bem grandinha, já maior de idade, em 1925, quando causaria frisson global na sequência da Exposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes, em Paris.[15]

Porém esta orientação então pagã ?às vezes chamada de “estilo moderno”, rótulo igualmente dado ao art-nouveau, do qual pode ser considerada quase que um desenvolvimento estilístico, um desdobramento, um continuum ?era pouco conhecida entre nós. Lá por São Paulo me ocorre de momento algumas realizações de Victor Dubugras (1868-1933) ?como a Estação de Mairinque, de 1907 ?que poderiam, com correção, ser emparelhadas em sincronia com obras de seus contemporâneos Otto Wagner (1841-1918), Josef Hoffmann (1870-1956) ou Auguste Perret (1874-1954).

   
 
 

Dubugras, por sua vez, parece ter influenciado alguns de seus alunos, transmitindo o gosto por um vocabulário ornamental despojado e geométrico. Veja-se a capela de Sant’Anna em Eleutério, de Guilherme Winter (1884-1961),[16] ou o Edifício Guinle, de Hippolyto Pujol Jr (1880-1952), ambos de 1912, ambos de forte sabor Secession.

 

Mais desconhecido por aqui o tal “movimento moderno”, que apenas engatinhava lá no velho mundo, muito em especial por terras germânicas. E atenção, antes da primeira grande guerra nem eram ainda distinguíveis entre si o ainda inominado art-déco, o expressionismo, o cubismo ou o futurismo. Em arquitetura, algo que pudesse ser identificado como “moderno” àquela altura nada mais era do que variações do ?insisto no inominado ?art-déco, um art-déco sem o déco, um art-déco fabril, quando muito um art-déco mais cerebrino.

 

Detour pelo MoMo

But what’s in a name anyway? A date, now, is something different. We ought to be able to trust a date.

Reginald Hill, Pictures of perfection, 1994

A existência autônoma na historiografia de um “movimento moderno” na arquitetura ocidental do século vinte começaria a ser construída bem mais tarde, talvez a partir de 1929, quando Henry-Russell Hitchcock (1903-1987) publicará o seu importantíssimo Modern Architecture: Romanticism and Reintegration. Apesar de ter sempre atribuído a ele, em parceria com Philip Johnson (1906-2005), a responsabilidade pela alcunha de International style em 1932, há pouco descobri o meu equívoco: os padrinhos parecem ter sido Walter Gropius (1883-1969), com seu Internationale Architektur, de 1925, e Ludwig Hilberseimer (1885-1967), com seu Internationale neue Baukunst, de 1927.[17]

Ao cabo e alguns anos depois, em meados da década de trinta o estilo irá receber finalmente esse rótulo, levado à pia batismal, ao que parece, pelas mãos de Nikolaus Pevsner (1902-1983), com seu Pioneers of the Modern Movement, de 1936. Porém, fica a impressão que a expressão não colou logo, uma vez que na sua segunda edição, o título do livro passou a Pioneers of modern design (1949). Seja como for, anos depois estaria consolidada, como indica o livro de Dennis Sharp (1933-2010), The modern movement in architecture: a biographical bibliography (1963).

Nas artes plásticas, a expressão “movimento moderno” começa a aparecer bem antes. Por exemplo, Ernest Chesneau (1833-1890) publica na Revue européenne uma série de biografias de pintores franceses ?como David (1748-1825), Géricault (1791-1824) e Delacroix (1798-1863). Estas foram lançadas como folhetos avulsos em 1861 sob o título coletivo de Le mouvement moderne en peinture.

Título extremamente adequado, o movimento moderno na pintura; quase se poderia falar em expressionismo avant la lettre, como mostram uns poucos exemplos.

 

Especificamente sobre pintura de vanguarda dos séculos dezenove e vinte, considere-se J. W. Beatty (1850-1924), The modern art movement (1924), ou R. H. Wilenski (1887-1975), The modern movement in art (1927). Quanto à expressão “arte internacional”, ela já dá título a exposições de arte de vanguarda realizadas desde a década de 1910.[18]

Em português, temos a famosíssima conferência de Mario de Andrade (1893-1945) “O Movimento Modernista”, proferida em 1942 e aqui citada em epígrafe. Em títulos há Três fases do movimento moderno, 1952, de Flavio de Aquino (1919-1987), sobre artes plásticas, e O movimento modernista, 1954, de Peregrino Júnior (1898-1983), sobre literatura, ambos opúsculos d’Os cadernos de Cultura, coleção do Ministério da Educação de relevante papel para a difusão de ideias modernas.

Fora do campo artístico, a expressão é corrente em meados do século dezenove, associada a tudo que é assunto: educação, cremação, feminismo, religião e teologia, socialismo, industrialismo, cooperativismo agrícola… Títulos ao acaso, Nineteenth century miracles; or, Spirits and their work in every country of the earth. A complete historical compendium of the great movement know as “modern spiritualism” (Britten, 1884); Jérusalem moderne… (Conil, 1894), The modern cremation movement (Cremation Society of England, 1909); The modern woman’s rights movement (Schirmacher, 1912);; Outlines of the history of the modern British working-class movement (Craik, 1917); ou The Arya samaj, a modern religious movement in India?(Whitley, 1923). Bem posterior, Quattro precursori del moderno movimento francescano (Oliger, 1930).

Enfim, ao longo do século dezenove e princípios do século vinte, a expressão “movimento moderno” parece ter abarcado e/ou sintetizado uma série de anseios de renovação nos mais diversos campos, para ao cabo estacionar de vez no ramo arquitetônico.

Na paulicea

Em meados da década de dez, justamente quando São Paulo estava em plena floração cultural, quando a paulicéia, por assim dizer, desvairava, o neocolonial constituía o único estilo moderno na cidade, se me permitem usar o termo como Mario de Andrade o teria usado na coluna “Notas de Arte” publicada n’A Gazeta, no dia da abertura da Semana, a 13 de fevereiro de 1922.

A hegemonia artística da corte não existe mais. No comércio como no futebol, na riqueza como nas artes, São Paulo caminha na frente. Quem primeiro manifestou a idéia moderna e brasileira na arquitetura? São Paulo com o estilo colonial[19]

Porém o que nos interessa por agora é que então reina o escritório do Ramos de Azevedo. E, com sua estética eclética de há muito entronizada, não precisa se dar ao trabalho de se justificar com algum discurso para se garantir no poder. São os outros, aqueles desejosos de ocupar espaços dominantes é que precisam de um arsenal teórico com que propugnar, com que obter legitimidade.

Dois nomes estão adentrando a arena e começam a se destacar como ideólogos da classe. De maior presença, com maior articulação, também ocupando postos de razoável relevo, temos Alexandre Albuquerque (1880-1940), o professor de arquitetura da Politécnica, membro fundador do Instituto de Engenharia, homem de grande cultura e já com um raio expressivo de influência.

No outro extremo, Christiano Stockler das Neves (1889-1982), o professor de arquitetura do Mackenzie, incentivador da criação anos depois do Instituto Paulista de Arquitetos ?justamente para concorrer com o Instituto de Engenharia ? também homem de respeitável cultura arquitetônica e também contando com seguidores, porém não com alcance comparável.

Há diferenças consideráveis entre eles. O Christiano, na verdade, defende posturas ainda mais antiquadas ?para não dizer reacionárias ?do que aquelas do Ramos de Azevedo e sua troupe. Ramos é eclético; Christiano é um homem da velha-guarda beaux-arts, um acadêmico de raiz. É um sectário estético ?fundamentalismo que iria lhe causar graves prejuízos no futuro, mas esta é uma estória pela qual não vamos nos embrenhar no momento.

 
 

Já o Alexandre é um pragmático. De profundas convicções racionalistas, consegue aplicá-las indistintamente em tudo que faz, seja lá qual seja o estilo que adota. Será ele um dos baluartes do neocolonial em São Paulo, orientação que transmite a seus alunos. Imaginem que em 1920 ele já levava os estudantes para Ouro Preto para conhecer a arquitetura colonial de primeira mão!!

 

Antonio Garcia Moya

Vejamos agora onde entra nesta história o nosso Antonio Garcia Moya. Aqui vou expor uma opinião que me é cara: Moya foi um pioneiro da arquitetura moderna entre nós. E está injustamente quase esquecido até hoje na historiografia. Tanto que a principal fonte sobre sua trajetória continua sendo a monografia de João de Deus Cardoso, Antonio Garcia Moya, o poeta da pedra: vida e obra, feita quando estudante na FAU/USP, em 1965, para as inspiradoras aulas de história da arte e estética do querido Flávio Motta (1923), filho de um participante da Semana de Arte Moderna, Cândido Motta Filho (1897-1977).

Nunca é excessivo chamar a atenção para o valor da contribuição de João de Deus, dos seus “apontamentos de um jovem que não tinha a ‘manha’ da organização, como Nestor Goulart, Aracy Amaral…” [20] É graças a ele que temos registros preciosos, hoje talvez impossíveis de se obter. Além de ter entrevistado a viúva e uma das filhas de Moya, respectivamente Felícia Tabuenca Moya e Olinda Moya Pascual, quase que só pôde contar com fontes primárias, como matérias de jornais e revistas. De fonte secundária, àquela época havia apenas o informativo e hoje clássico Antecedentes da Semana de Arte Moderna (1958), de Mário da Silva Brito.

Afora uma ou outra citação em umas poucas obras de referência, o que sobressai é o já citado, também clássico e sempre brilhante livro de Aracy Amaral, Artes plásticas na Semana de 22, publicado em 1970, com edições revistas de 1992 e 1998. De real interesse e de fato informativo, pouco mais existe. Há o folder da exposição Antonio Garcia Moya e sua arquitetura visionária, organizada por Marta Rossetti Batista (1940-2007) ?a sensível biógrafa de Anita Malfatti[21] ?e realizada no Instituto de Estudos Brasileiros da USP em 1991.[22] Apesar de insistir numa interpretação um tanto anacrônica do que seria “arquitetura moderna” em princípios da década de 1920, a sua apresentação ainda é o que de melhor se escreveu mais recentemente sobre Moya.

Porém seu título me incomoda. Porque Moya seria visionário?

Em geral, a arquitetura visionária é entendida como algo que não é tecnicamente possível de ser construído quando da sua concepção, que só pode existir na imaginação ou representado em menor escala em alguma mídia. Cada um à sua maneira, visionários são Piranesi (1720-1778) e Boullée (1728-1799) e, à época do Moya, Antonio Sant’Elia (1888-1916). Dentre os modernos, está Buckminster Fuller (1895-1983); e houve de pouco um Archigram, da turma do Peter Cook (1936).

 

O que é visionário, os delicados desenhos de Moya? Ou o Plan Voisin (1925), de Le Corbusier (1887-1965), que ?apesar do nome ?não tem nada a ver com vizinhos??

 

Por aí já se percebe o rumo ambíguo que tomou a narrativa sobre Antonio Garcia Moya. De quando em vez o seu nome surge em algum artigo, mas parece que foi estabelecido um juízo discricionário tanto sobre a sua obra, como sobre a presença da arquitetura na Semana de 1922. Mas isto fica para um próximo episódio.


Leia também:

Antonio Garcia Moya, um arquiteto da Semana de 22:

Parte 2 : ou la mala suerte…
por Sylvia Ficher

1922: quando o moderno não era um estilo, e sim vários
Editorial
por Danilo Matoso Macedo


Notas

* Este artigo é uma ampliação da biografia de Antonio Garcia Moya, escrita em 1989 e divulgada em 1998, como parte do trabalho O curso de arquitetura da Academia de Belas Artes de São Paulo: 1928-1934. Agradeço as sugestões de Danilo Macedo e Eduardo Rossetti para a presente atualização.

[1] Conferência proferida a 30 de abril de 1942, na Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores, Rio de Janeiro, in Mario de Andrade, Aspectos da literatura brasileira, 1972, p. 232.

[2] Apud João de Deus Cardoso, Antonio Garcia Moya, o poeta da pedra: vida e obra, 1965, p. 10.

[3] Lucio Costa, Carta-depoimento, 1948, in Lucio Costa, Sobre arquitetura, 1962, pp. 123-24; Yves Bruand, Arquitetura contemporânea no Brasil, 1981.

[4] Aracy Amaral, Artes plásticas na Semana de 22, 1970. Aqui estaremos usando a edição revista e ampliada de 1992, notável também pela qualidade do material iconográfico, p. 152, grifos meus. Em algumas situações será usada a edição de 1998, devido aos anexos a ela acrescentados.

[5] O seu amigo Brecheret é apresentado no site do Instituto Victor Brecheret como “artista brasileiro” nascido na Itália (//www.brecheret.com.br/), apesar de aqui ter aportado com mais de seis anos. Lucio Costa nasceu na França, veio para o Rio de Janeiro no ano seguinte, mas em 1910, aos oito anos de idade, voltou para a Europa, onde “recebe ensino básico na Inglaterra e na Suíça.” Voltaria ao Rio em 1916 ou 1917, aos quatorze ou quinze anos de idade (//www.casadeluciocosta.org/). Mesmo assim, é considerado brasileiro, jamais franco-brasileiro, quando muito de naturalidade francesa. Já o Moya, nunca perdeu a pecha de estrangeiro, como se verá.

[6] No há pouco citado livro de Aracy, 1994, p. 160. Incidentalmente, ao chamar a atenção para a simultaneidade de um momento espetaculoso tanto para o neocolonial como para o modernismo, o ano de 1922, Lemos se interroga: Por qué Victor Dubugras no participó en la semana modernista? (p. 159). A resposta me parece simples. Trata-se de pessoas de gerações muito diversas. Dubugras é um exato quarto de século mais velho do que Mario de Andrade; o que estaria fazendo no meio dessa molecada da Semana?

[7] Joana Mello, Ricardo Severo: da arqueologia portuguesa à arquitetura brasileira, 2007.

[8] O 1º Congresso Panamericano de Arquitetos foi realizado em 1920 em Montevidéu; o 2º Congresso em 1923 em Santiago; o 3º Congresso reuniu-se de 1 a 10 de julho de 1927 em Buenos Aires.

[9] Ver sua biografia in Sylvia Ficher, Escola de Engenharia Mackenzie: professores do Curso de Arquitetura, 1989-2007, pp. 12-17.

[10] Carlos Rubens, Pequena história das artes plásticas no Brasil, 1941, p. 245.

[12] Kneese de Mello, Residência Theodoro Braga, Revista de Engenharia Mackenzie, no 69, jul 1938.

[13] Foi Danilo Macedo que chamou minha atenção para o episódio.

[14] Luiz. Schreiner, As obras da nova Praça do Commercio, 1884, pp. 89-90.

[15] Para momento bem posterior e com outros atores, Aracy (1992, pp. 52-59) aponta a existência de uma estética art-déco anterior a 1925, ao falar da “influência do art déco, ou seja, do ‘moderno’ em geral, sobre artistas brasileiros” (p. 52), ao se referir justamente a alguns daqueles representados na Semana, além da própria Tarsila do Amaral (1886-1973), aí já em fins da década.

[16] In Revista de Engenharia, v. 2, no 4, p. 101, 1o out 1912.

[17] Note-se que, apesar da qualificação de “internacional” ter sido outorgada à arquitetura moderna, internacionalismo não é exclusividade sua, não é novidade em arquitetura. No contexto europeu, o gótico foi internacional; no contexto mundial, os classicismos foram e ainda são internacionais, idem o art-nouveau e o art-déco.

[18] Internazionale Ausstellung, 1921, de Hilberseimer, in Michele Caja (org.), Ludwig Hilberseimer: Grosstadtbauten e altri scritti di arte e di architettura, 2010, p. 112.

[19] Apud Aracy Amaral, 1992, p. 130 (detalhes à nota 31, p. 237).

[20] João de Deus Cardoso, Correspondência a Sylvia Ficher, São Paulo, 5 maio 1988.

[21] Marta Rossetti Batista, Anita Malfatti no tempo e no espaço, 1985.

[22] Há referência à sua republicação, no ano seguinte, na Revista da Biblioteca Mario de Andrade.


Sylvia Ficher
Doutora em história pela FFLC/USP, com pós-doutorado em sociologia na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris), e professora da FAU/UnB. É autora de Arquitetura Moderna Brasileira (1982), com Marlene Milan Acayaba; GuiArquitetura de Brasília (2000), com Geraldo Nogueira Batista; Os Arquitetos da Poli (2005), agraciado com o Prêmio Clio, da Academia Paulistana de História; e Guia de obras de Oscar Niemeyer: Brasília 50 anos (2010), com Andrey Schlee. sficher@unb.br

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Danilo Matoso Macedo

Há homens que veem tudo de uma só cor, quase sempre preto. Eu vejo preto, branco, roxo, vermelho, amarelo. Vejo tudo de todas as cores do arco da velha. Aquele que vê uma cor só é mais pobre do que aquele que vê as sete cores. O homem que tem uma ideia só sobre um assunto é mais pobre do que aquele que tem duas. Dois valem mais do que um, pelo menos assim me ensinaram.

Rubens Borba de Moraes, Domingo dos séculos, 1924

Ao tomar conhecimento da revista MDC, Joaquim Guedes, imaginou ser a letra M correspondente a movimento. Talvez ele tenha se decepcionado ao constatar que nossas aspirações eram mínimas. Ponderou então, relembrando um antigo professor marxista, que os dois atributos do ser são a matéria e o movimento. E que se movimento é vida, ou nós lemos a vida e fazemos boa arquitetura ou não lemos e não fazemos nada

A Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo em 1922, não iniciou a arte moderna no Brasil, mas certamente colocou em movimento um modo moderno de discuti-la. Glorioso de antemão, no dizer de Mário de Andrade, o evento cumpriu seu propósito de alavancar jovens artistas, não só da metrópole em formação como de outras paragens ?como o próprio Rio de Janeiro ? para um plano de destaque na cultura nacional. Vinte anos depois, já era História rememorada e celebrada pelo próprio Mário.

Mitificado, combatido, recuperado, novamente combatido, o modernismo brasileiro ainda persiste entre nós. Mas a que modernismo brasileiro nos referimos?

Seria o expressionismo de Anita Malfatti e Di Cavalcanti? A estilização de Victor Brecheret e Vicente do Rego Monteiro? Ou o pontilhismo da belorizontina Zina Aita? Talvez a arquitetura despretensiosamente vernácula do polonês Georg Przyrembel. Ou a erudita arqueologia iconográfica dos edifícios de Antônio Garcia Moya…

Se a arte moderna nunca teve uma só causa, tendo bem servido tanto a fascistas como a comunistas, tampouco teve um só estilo. Mesmo assim, costumamos tratar por moderno um grupo restrito de obras. Na arquitetura, basta observar nas ruas que a maior parte da produção edilícia de nossas cidades permanece excluída do ensino em nossas escolas: desde o neocolonial, ainda presente em nossas residências, até o Déco ainda vigente na arquitetura corporativa. Vários estilos e obras, considerados modernos por seus contemporâneos eruditos e mais vanguardistas há um século, mantêm-se até hoje à margem da cultura arquitetônica habitualmente historiografada ?salvo alguns esforços isolados. E se mesmo Aita, Przyrembel e Moya, participantes da própria Semana de Arte Moderna de 1922, permanecem desconhecidos até do público especializado, que dizer de tantos outros…

Recuperando a figura do arquiteto paulista Antônio Garcia Moya, Sylvia Ficher comemora com a revista MDC os 90 anos da Semana de 22, num texto que será publicado na íntegra em três partes. O ar de novidade de fatos tão antigos talvez seja sinal de que neste campo há sempre muito o que por em movimento…


Antonio Garcia Moya, um arquiteto da Semana de 22
por Sylvia Ficher

Parte 1 : ou pro Mario, o Moya era moderno…

Parte 2 : ou la mala suerte…


danilo matoso macedo
Arquiteto e Urbanista (UFMG, 1997), Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 2002), Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ENAP, 2004), editor da revista mdc.

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